Nos últimos meses, milhões de pessoas em todo o mundo pararam de ir aos escritórios e começaram a trabalhar em casa. Esses trabalhadores podem estar longe da vista dos gestores, mas permanecem nos seus pensamentos. A agitação foi acompanhada por um relato de aumento no uso de softwares de vigilância que permite que os empregadores monitorizem o que os seus funcionários estão a fazer e por quanto tempo.
As empresas pediram aos funcionários remotos para instalarem uma grande variedade dessas ferramentas. O Hubstaff é um software que regista as teclas digitadas nos teclados dos utilizadores, o movimento do rato, e os sites que visitam. Já o Time Doctor vai mais longe, gravando vídeos dos ecrãs dos utilizadores. Também pode tirar fotos através da webcam a cada 10 minutos para confirmar se os funcionários estão nos seus computadores. E a Isaak, uma ferramenta feita pela empresa britânica, Status Today, monitoriza as interações entre os funcionários para identificar quem colabora mais, combinando esses dados com informações dos arquivos pessoais para identificar os indivíduos que são “agentes da mudança”.
Agora, uma empresa quer levar as coisas ainda mais longe. Está a desenvolver um software de machine learning que mede a velocidade com a qual um funcionário completa diferentes tarefas e sugere formas de acelerá-las. A ferramenta também dá a cada pessoa uma pontuação de produtividade, onde os gerentes podem usá-las para identificar os funcionários que são mais vantajosos de manter – e aqueles que não são.
Como se sente sobre isso dependerá de como vê o acordo entre empregador e empregados. Está tudo bem em ser espiado pelas pessoas porque elas lhe pagam? Deve ao seu empregador ser o mais produtivo possível, acima de tudo e todas as coisas?
Os críticos argumentam que a vigilância no local de trabalho mina a confiança e prejudica a moral. Grupos de direitos dos trabalhadores dizem que tais sistemas só devem ser instalados após consulta com os funcionários. “Isso pode criar um enorme desequilíbrio de poder entre os trabalhadores e os gestores”, diz Cori Crider, uma advogada do Reino Unido e cofundadora da Foxglove, uma firma jurídica sem fins lucrativos que trabalha para impedir que governos e grandes empresas façam uso indevido de tecnologia. “E os funcionários têm menos capacidade de responsabilizar os gestores”.
Independente da sua opinião quanto ao acordo, este tipo de software veio para ficar – em parte porque o trabalho remoto está a normalizá-lo. “Acredito que a monitorização do ambiente de trabalho tornar-se-á algo popular,” diz Tommy Weir, CEO da Enaible, a startup sediada em Boston que está a desenvolver o novo software de monitorização. “Nos próximos seis a 12 meses, vai estar tão difundido que será onipresente”.
Weir pensa que a maioria das ferramentas no mercado não arriscam o suficiente. “Imagine que está a gerir alguém e poderia levantar e observá-lo o dia inteiro e passar-lhe recomendações para fazer o trabalho melhor,” diz Weir. “É isso o que estamos a tentar fazer. É isso o que nós construímos”.
Weir fundou a Enaible em 2018 após treinar CEOs por 20 anos. A empresa já fornece os seus softwares para várias grandes organizações em todo o mundo, incluindo a agência alfandegária de Dubai e o Omnicom Media Group, uma companhia multinacional de comunicações e marketing. Mas Weir afirma que também está em negociações de estágio final com a Delta Airlines e a CVS Health, uma rede de cuidados de saúde e farmácia dos EUA classificada em 5º lugar na lista Fortune 500. Nenhuma das empresas comentou se ou quando estavam a preparar-se para implantar o sistema.
Weir diz que tem recebido quatro vezes mais pedidos desde que a pandemia fechou os escritórios. “Nunca vi nada parecido,” diz.
Por que o repentino aumento no interesse? “Os chefes tentam extrair até a última gota de produtividade e trabalho dos seus trabalhadores muito antes dos computadores”, diz Crider. “Mas a granularidade da vigilância agora disponível é diferente de tudo o que já vimos”.
Não é nenhuma surpresa que esse nível de detalhe seja atraente para os empregadores, especialmente aqueles que procuram manter o controlo sobre uma força de trabalho recentemente remota. Mas o software da Enaible, conhecido como AI Productivity Platform, vai além do rastreamento de e-mail, Slack, Zoom, ou pesquisas na internet. Nada disso mostra a imagem completa do que o funcionário está a fazer, diz Weir – apenas confirma se está a trabalhar ou não.
Uma vez configurado, o software é executado em segundo plano o tempo todo, monitorizando qualquer rasto de dados que uma empresa possa fornecer para cada um dos seus funcionários. Usando um algoritmo chamado Trigger-Task-Time, o sistema aprende o fluxo de trabalho típico para diferentes trabalhadores: quais gatilhos, como um e-mail ou uma chamada telefónica, levam a quais tarefas e quanto tempo levam para serem concluídas.
Depois de aprender um padrão típico de comportamento de um funcionário, o software dá a essa pessoa uma “pontuação de produtividade” entre 0 e 100. A IA é agnóstica em relação às tarefas, diz Weir. Em teoria, os trabalhadores de uma empresa ainda podem ser comparados pelas suas pontuações, mesmo que realizem trabalhos diferentes. Os pontos também refletem como o seu trabalho aumenta ou diminui a produtividade de outras pessoas na sua equipa. Existem limitações óbvias para esta abordagem. O sistema funciona melhor com funcionários que realizam muitas tarefas repetitivas em locais como centrais de atendimento ou departamentos de atendimento ao cliente, em vez daqueles com funções mais complexas ou criativas.
Mas a ideia é que os gestores possam usar essas pontuações para ver como os seus funcionários se estão a comportar, recompensando-os se eles forem mais rápidos no desempenho de seu trabalho ou verificando as suas performances se notarem uma queda. Para ajudá-los, o software da Enaible também inclui um algoritmo chamado Leadership Recommendation, que identifica pontos específicos no fluxo de trabalho de um funcionário que poderiam ser mais eficientes.
Para algumas tarefas, isso pode significar tirar o humano do circuito e automatizá-lo. Num exemplo, a ferramenta sugeriu que automatizar uma tarefa de verificação de qualidade de 40 segundos executada por funcionários do atendimento ao cliente 186.000 vezes por ano economizaria 5.200 horas. Isso significava que os funcionários humanos poderiam dedicar mais atenção a um trabalho mais valioso, melhorando os tempos de resposta do atendimento ao cliente, sugere Weir.
Negócios, como sempre
Mas falar em corte de custos e economia de tempo há muito é um discurso duplo para demitir funcionários. Conforme a economia desmorona, a Enaible está a promover o seu software como uma forma de as empresas identificarem os funcionários que devem ser mantidos – “aqueles que estão a fazer uma grande diferença no cumprimento dos objetivos da empresa e na geração de lucros” – e garantir a motivação e o foco enquanto trabalham de casa.
O outro lado, é claro, é que o software também pode ser usado por gerentes para escolher quem despedir. “As empresas vão demitir pessoas – sempre o fizeram”, diz Weir. “Mas pode ser objetivo em como o faz isso, ou subjetivo”.
Já Crider, vê isso de forma diferente. “O que é tão capcioso sobre esses sistemas é que há uma camada de objetividade sobre eles”, afirma. “É um número, está num computador – poderia haver algo suspeito? Mas não precisa arranhar a superfície com muita força para ver que por trás da grande maioria desses sistemas estão valores sobre o que deve ser priorizado”.
Os algoritmos de machine learning também codificam inclinações ocultas nos dados nos quais são treinados. Esse enviesamento é ainda mais difícil de expor quando está enterrado dentro de um sistema automatizado. Se esses algoritmos forem usados para avaliar o desempenho de um funcionário, pode ser difícil recorrer de uma análise injusta ou demissão.
Enaible afirma que a agência alfandegária de Dubai agora está a implementar o seu software em toda a organização, com a meta de US $ 75 milhões em economia na folha de pagamento nos próximos dois anos. “Essencialmente, separamos a nossa taxa de crescimento da nossa folha de pagamento”, disse o diretor-geral da agência. O Omnicom Media Group também está feliz com a forma como a Enaible ajuda a obter mais dos seus funcionários. “A nossa equipa global precisa de ferramentas que façam a diferença quando se trata de desenvolver a nossa capacidade interna sem aumentar o nosso número de funcionários”, disse o CEO Nadim Samara. Em outras palavras, extrair mais dos funcionários existentes.
Crider insiste que existem maneiras melhores de incentivar as pessoas a trabalhar. “O que está a ver é um esforço para transformar um humano numa máquina antes que a máquina os substitua”, considera. “Precisa criar um ambiente no qual as pessoas se sintam confiantes para fazer o seu trabalho. Não irá conseguir isso vigiando-os”.
Artigo original publicado por Will Douglas Heaven, autor do MIT Technology Review (EUA) (adaptado).