Ao longo da evolução, foram incorporados pedaços de vírus no material genético dos nossos antepassados. O primeiro deles foi há 40 milhões de anos. Quando a sequência genética introduzida é útil, a seleção natural age e, como mutação benéfica, espalha-se pela população. Hoje sabemos que metade da estrutura de genes humana é uma herança viral. Este legado foi decisivo para a evolução humana. Herdamos genes que permitiram, por exemplo, a formação da placenta, pele, ossos e do próprio cérebro.
Somos descendentes dos sobreviventes de uma angustiante série de epidemias virais, o que não significa que devemos aguardar sentados pelo próximo capítulo da evolução. Até porque, de longe a longe, ocorre uma extinção em massa – o desaparecimento de diversas espécies ao mesmo tempo – por algum tipo de alteração ambiental, intercalado a extinções “de fundo”, de espécies individuais e bem estabelecidas. Especula-se que essas extinções “de fundo” são causadas principalmente por parasitas e doenças contagiosas. Temos, como exemplos, o diabo da Tasmânia e o rato nativo da Austrália.
No caso do homo sapiens, é improvável que quaisquer parasitas ou vírus sejam responsáveis diretos pela sua extinção. A aniquilação, se vier, será por mérito próprio, fruto de reações do ambiente a ações humanas. De qualquer modo, como veremos a seguir, os vírus podem causar estragos indiretos com consequências visíveis durante décadas e risco de destruição em massa.
Quando desembarcou em Paris, o presidente norte-americano Woodrow Wilson estava confiante em liderar as negociações que determinariam os rumos da Europa. Até àquele momento, o mundo acumulava mais de 20 milhões de mortes nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, e número equivalente de óbitos pelo vírus influenza. Na cabeça do 28º presidente dos Estados Unidos não havia espaço para pensar no vírus, sobre o qual aliás sempre se manteve em silêncio. O foco foi sempre a guerra.
Logo nos primeiros dias na Cidade Luz, Wilson ficou infetado, e a partir daí tornou-se um líder desorientado nas discussões acaloradas com os presidentes europeus. O vírus multiplicava no seu corpo, confundindo os seus pensamentos com inimigos imaginários, que lhe tiravam o raciocínio e argumentos sem os quais o tratado de Versalhes se tornaria um instrumento transversal.
No final, o tratado determinou que a Alemanha deveria assumir as responsabilidades pela guerra e estabeleceu sanções que se transformariam em fermento para a ascensão de movimentos nacionalistas, do nazismo de Hitler, e em última instância, da Segunda Guerra Mundial. O vírus da Gripe Espanhola matou 50 milhões de pessoas, mas indiretamente também contribuiu para as mais de 60 milhões de mortes nos confrontos da Segunda Guerra. Essa história está contada no livro “A Grande Gripe”, de John M. Barry, publicado pela Intrínseca.
Os vírus são como a materialização biológica do limite entre vida e a não vida. Para “reviverem” precisam de sequestrar a maquinaria de células. Sem esses “parceiros” celulares não são nada.
É um facto que alguns têm neurotropismo evidente, como é o caso do vírus da poliomielite que ataca preferencialmente a medula espinal, o varicela-zoster que infecta o gânglio da raiz dorsal, o herpes simplex e vírus da raiva que se aproveitam das células neuronais da periferia do sistema nervoso.
Há, entretanto, vasta documentação científica sobre a invasão do cérebro por vírus sem tropismo original por neurónios, incluindo o próprio vírus influenza, o vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), o zika e o coronavírus.
São oportunistas, só precisam de encontrar uma porta de entrada, normalmente receptores de membrana das células, cuja função desvirtuam. Por isso, pouco importa o tipo de célula, mas a oportunidade que tem de invadi-la.
O Sars-Cov-2 é o sétimo coronavírus conhecido por causar doenças em humanos, a par do HCoV-229E, HCoV-NL63, HCoV- OC43, HCoV-HKU1, SARS-CoV e MERS-CoV. Em 2000, equipas do Canadá e Inglaterra identificaram a presença dos coronavírus HCoV-229E e HCoV- OC43 em pelo menos metade de 100 cérebros autopsiados.
No início de setembro, cientistas da Universidade de Yale identificaram o Sars-Cov-2 no cérebro de pacientes adultos. Alguns dias depois, a nossa equipa, no Instituto D’Or, UFRJ e Instituto Estadual do Cérebro, também apresentava resultados sobre a presença do vírus no cérebro de uma criança que faleceu com Covid-19.
No sistema nervoso, as partículas virais concentravam-se no plexo coroide, camada epitelial com junções compactas no interior dos ventrículos que produz o líquido cefalorraquidiano e desempenha função de barreira. Uma equipa de Cambridge obteve resultados semelhantes aos nossos, utilizando como modelo experimental organoides cerebrais humanos infetados em laboratório. A nossa hipótese é que a disfunção do plexo coroide pelo Sars-CoV-2 favorece essa neuroinvasão oportunista com consequentes lesões ao cérebro.
Em outubro, uma equipa de 40 cientistas liderados por professores da Unicamp e USP também demonstraram a presença de Sars-Cov-2 no cérebro de pacientes com Covid-19, 19% deles com lesão cerebral. Além disso, descreveram que mesmo nos indivíduos com infeção leve e que nem sequer foram internados, havia alterações na espessura do córtex cerebral. Essas alterações anatómicas estavam associadas a episódios de ansiedade, depressão e défices de memória. A infecção de astrócitos, células com papel fundamental no funcionamento do cérebro, pode explicar tanto as mudanças físicas como de comportamento.
Desde o início da pandemia, perda de olfato e paladar, às vezes fala, encefalite, acidente vascular cerebral, neuropatia (como Guillain-Barré), mialgia e parkinsonismo têm vindo a ser associadas à Covid-19. Mais de 30% dos pacientes apresentam sintomas neurológicos ou neuropsiquiátricos. O mais intrigante é que pelo menos metade desses pacientes continuam a manifestar tais sintomas três ou quatro meses após o diagnóstico da doença.
O líder norte-americano poderia ter se saído melhor nas negociações de Versalhes. Não o fez provavelmente pelo vírus no seu cérebro. Vale a pena mencionar que acabou por recuperar da influenza, mas 6 meses depois sofreu um AVC incapacitante.
Na década de 1920, o número de pacientes hospitalizados com transtornos mentais aumentou 7 vezes, o que foi atribuído às sequelas da gripe espanhola. Os sobreviventes também relataram distúrbios do sono, depressão, confusão mental, tonturas e dificuldades no trabalho por vários anos. Houve ainda uma elevação nas taxas de suicídio no mesmo período.
Com mais de 41 milhões de infectados por Sars-Cov-2 no mundo, não é possível descartar cenário semelhante nos próximos anos.
Ao longo dos encontros e desencontros da história evolutiva da vida na Terra, os vírus trouxeram benefícios para muitas espécies, mas foram, principalmente, responsáveis por flutuações populacionais e extinção de muitos animais.
O nosso conhecimento científico não se compara ao disponível há 100 anos. A ciência é que nos garantirá a sobrevivência. E para o futuro próximo, cuidar da saúde mental da população deve ser prioridade.
Artigo de Stevens Rehen – Cientista, UFRJ e Instituto D’Or