O último evento da Apple, o WWDC trouxe mais uma vez à tona o interesse de uma gigante de tecnologia no setor de saúde. A cada ano novidades surgem no evento da Apple trazendo de novos hardwares para monitorizar dados de saúde, até atualizações na aplicação de saúde e no HealthKit, com melhorias para integração de terceiros ou novas formas de partilha de dados com utilizadores.
Bem, todas as BigTechs estão no páreo, com diferentes abordagens, é verdade, porém com um mesmo objetivo, abocanhar uma parcela de um gigantesco mercado e que só nos Estados Unidos, representa 18% do PIB, a saúde.
E não é a primeira vez que as gigantes de Silicon Valley tentam entrar no mercado de health techs com os seus produtos. Os exemplos mais famosos, e fracassados, diga-se de passagem, foram do Google com o Google Health (que iniciou em 2006 e foi descontinuado em 2012) e da Microsoft com o HealthVault (2007-2019), ambos com a proposta de permitir que as pessoas guardassem e gerissem informações médicas num só lugar.
Claro que o momento agora é outro e que tais iniciativas talvez estivessem muito à frente do seu tempo, pois agora os dados de saúde estão cada vez mais fáceis de serem captados e armazenados, utilizadores estão mais preparados, e até mesmo os nossos smartphones podem ser considerados dispositivos de saúde.
Mais do que nunca é interessante entendermos as diferentes estratégias que cada uma delas procura para atuar nesse mercado.
Apple: privacidade e controlo dos dados pelos pacientes
A Apple investe cada vez mais no discurso de segurança e privacidade e na área de saúde não seria diferente. Esta pauta a sua estratégia em colocar o utilizador no centro das suas decisões, permitindo um controlo completo do que e quando partilhar dados com terceiros. Inclusivamente esse foi um dos pontos que chamou mais atenção no último evento da empresa, a possibilidade de integração com softwares de prontuário eletrónico, porém fornecendo ao utilizador sempre a escolha do que partilhar.
Infelizmente essas novas iniciativas ainda estão muito focadas no mercado americano, sendo que os softwares indicados pela empresa, são maioritariamente utilizados nos Estados Unidos, porém raramente em outros países. Além disso, na sua grande maioria são sistemas destinados a grandes hospitais, deixando de lado a maioria dos profissionais de saúde que atendem a população em geral no dia a dia.
A empresa de Cupertino lançou também novos gráficos de tendência para trazer insights para os utilizadores sobre mudanças nos seus indicadores de saúde, como sono, passos e glicemia, uma iniciativa interessante, visto que com um vasto volume de dados comportados pelo aplicação Saúde, o desafio passa agora a interpretação dos mesmos pelo público mais leigo.
[Photo: WWDC Junho/21]
Sobre o futuro, existe uma imensa expectativa que as novas gerações de dispositivos, como o Apple Watch, tragam também tecnologias para medição de temperatura e glicemia. Essa segunda funcionalidade, em especial, traz consigo um potencial gigantesco, ao trazer uma nova forma de medição de forma não-invasiva, o que pode extinguir rapidamente métodos tradicionais, como o da medição da glicemia no sangue através de um pequeno furo num dos dedos. Fora o imenso mercado endereçável, segundo a Sociedade Brasileira de Diabetes, cerca de 12 milhões de brasileiros convivem com a diabetes, já imaginou num contexto global?
Microsoft: IA e serviços na nuvem customizados para organizações de saúde
A Microsoft foi às compras e investiu pesado nesse mercado com a compra da Nuance por quase 20 mil milhões de dólares. Com essa movimentação, aproxima-se ainda mais dos softwares de prontuário eletrónico (EHR) do mercado e também de operadoras de saúde e hospitais. Diferente da sua primeira tentativa no mercado de saúde com a HealthVault tentando atingir diretamente o consumidor final, agora a proposta é outra, foco em clientes enterprise.
[Foto: Uma das tecnologias da Nuance, IA e tecnologias por voz para softwares de prontuário]
Google: apoio a profissionais de saúde e navegação no sistema de saúde
Dentre as gigantes de tecnologia, o Google é a com mais diversidade nas suas iniciativas, atuando desde a parte de estudos e pesquisas para cientistas e profissionais de saúde com o Health Research, passando também por iniciativas para determinadas doenças e profissionais de saúde.
[Screenshot: Google Electronic Health Record – EHR]
Organização de dados de saúde para profissionais: é inegável que o Google sabe organizar informações, não é verdade? E esse é o objetivo de um dos seus principais projetos na área de saúde, como conectar diferentes fontes de dados e transformar esses dados em informações acessíveis e organizadas, auxiliando profissionais na tomada de decisões médicas. O desafio está na interoperabilidade entre sistemas e em como fazer com que essas iniciativas ganhem escala, afinal os primeiros experimentos da empresa seguem com poucas clínicas, hospitais e softwares de prontuário parceiros.
Ajudar pacientes a navegarem no sistema de saúde: desenvolvimento de ferramentas que auxiliem e guiem pacientes em suas dúvidas de saúde. No passado a empresa trabalhou, por exemplo, com o Hospital Albert Einstein na produção de conteúdos sobre algumas doenças e sintomas, e que eram apresentados para os utilizadores quando realizavam pesquisas com determinadas palavras-chave. E a linha é exatamente essa, porém agora também com questionários mais completos e que possam se aprofundar no que o utilizador precisa.
A empresa também já promove conteúdos de saúde de terceiros de maneira diferenciada, categorizando-os em YMYL (Your Money or Your Life), uma categoria especial de sites e conteúdos que possuem mais rigor na hora do ranqueamento nas pesquisas do Google, levando em consideração três fatores: perícia, autoridade e credibilidade. Assim segue oferecendo conteúdos de terceiros no seu mecanismo de busca, mas trazendo mais rigor para evitar priorizar conteúdos que não tenham o crivo de profissionais ou organizações de saúde. Bons exemplos de sites que seguem essa categoria no Brasil são a Doctoralia e o Portal Minha Vida.
Facebook: uso da saúde para interação nas suas redes sociais
Existem relatos que a empresa está a testar wearables com foco em dados de saúde e que o plano é lançar algo nessa linha em 2022. Outros relatos também afirmam que a empresa usará a base de biliões de utilizadores para fornecer funcionalidades baseadas em notificações e lembretes de saúde, como forma de ajudar no engagement dos utilizadores nas suas plataformas. E a empresa já testou esse conceito de lembretes em alguns países, confira no exemplo abaixo:
[Screenshot: cortesia do Facebook com exemplos de lembretes de saúde em sua rede social]
Claro que com as especulações, também cresce o receio sobre o uso desses dados para outros fins, como segmentação de utilizadores e propagandas com base em tais informações.
Sonho VS Realidade
De maneira geral, vejo o futuro com bons olhos em relação ao ingresso dessas empresas no setor de saúde, em especial por dois fatores:
Luta a favor da interoperabilidade: os grandes softwares do mercado, em especial os mais antigos, tendem a ser contra tais iniciativas pois trazem facilidade para que os seus clientes migrem de software, representando um risco para os seus negócios. Google, Apple, Amazon e Microsoft já demonstraram interesse nessa briga para tornar os dados mais acessíveis e conectados entre sistemas, justificando que essa mudança é necessária para conectar os diferentes players da saúde e que tais ações beneficiarão os pacientes.
Tornar pesquisas e novas tecnologias mais acessíveis: muitas tecnologias que Google e Apple estão a investigar ainda não estão prontas para o uso e podem representar anos e milhões de dólares em investimentos antes de partirem para o mercado. Porém, como dinheiro não é problema, podem se dar ao luxo de investir em tais tecnologias e realizar testes em menor escala em parceria com grandes instituições, como Stanford, Mayo Clinic, etc.
Porém, por outro lado, não acredito que essas empresas resolverão tudo sozinhas. A tecnologia, por exemplo, precisa ganhar escala, e o trabalho apenas com clientes em pequenas empresas ou parcerias com instituições referências, atinge uma fatia muito pequena da população. Afinal, quantas pessoas têm a oportunidade de realizar uma consulta no Hospital Albert Einstein ou no Sirio Libanês no Brasil, não é? O futuro está em parcerias com startups que estejam a apoiar pequenas clínicas e médicos individuais, pois essas estratégias sim poderão trazer capilaridade na difusão de novas tecnologias, do contrário serão apenas tecnologias caras e utilizadas em pequena escala em hospitais de referência pelo mundo, mais como ações de marketing do que propriamente para melhorar a vida de pacientes e profissionais de saúde.
Artigo de Gustavo Comitre, Autor – MIT Technology Review Brasil