O trágico ano de 2020 será para sempre marcado pelo 1,7 milhão de perdas de vidas humanas com a Covid-19 e por uma reorganização social sem precedentes. Mas também representou uma oportunidade única de observar a ciência em ação. No começo da pandemia, boa parte da comunidade científica concentrou-se em descrever o Sars-Cov-2, entender como se propagava e identificar novas maneiras de diagnosticá-lo. Testes moleculares foram rapidamente disponibilizados. De início, investigadores sequenciaram o genoma do novo vírus e, em poucos meses, desvendaram a natureza da infecção e da resposta imunológica associada. Aprendemos como nunca e produzimos como nunca. Em tempo recorde, desenvolvemos novas vacinas — imunizantes que induzem anticorpos e esperança às populações.
Aproximadamente 5% de toda a produção científica mundial do ano tratou da Covid-19. O conhecimento acumulado foi disponibilizado na forma de 200 mil artigos científicos. Desse total, somente 39 foram retirados. Exemplo de como incerteza e autocorreção da ciência são virtudes e não falhas.
Apesar da falta de incentivo e mesmo diante de cortes históricos de recursos, a ciência brasileira brilhou com 4 mil artigos científicos assinados por investigadores do país. As nossas universidades e instituições de pesquisa posicionaram o Brasil entre as 11 nações que mais produziram conhecimento sobre o novo coronavírus.
Porém, além do foco envolvido e urgente da comunidade científica e de tudo que a ciência biomédica descobriu sobre o Sars-Cov-2, a peste do presente, outras áreas da ciência ajudaram-nos a desvendar mistérios do passado e também ganharam destaque nesse ano, a começar pela paleontologia. Fragmentos fósseis de mais de 70 milhões de anos revelaram um embrião de tiranossauro. Pedaços de cartilagem de hadrossauros também foram descobertos, contendo contornos de células e material genético. Não é o primeiro ADN fossilizado, mas certamente o mais antigo já descoberto. Tais materiais ajudarão a revelar novos detalhes do metabolismo dos dinossauros, como a descoberta, em 2019, sobre a capacidade dos velociraptors de manter a temperatura constante, ao contrário do observado nos répteis.
E para quem se lembrou do Parque Jurássico, vale acompanhar os avanços da “tesoura molecular” conhecida como CRISPR, acrónimo do termo em inglês Clusters of Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats. Em 2012, Emanuelle Charpentier e Jennifer Doudna usaram a ferramenta para “cortar” ADN num tubo de ensaio. Nesse ano, as duas cientistas foram galardoadas com o Prémio Nobel de Química.
Laboratórios de mais de 80 países têm modificado o ADN de plantas, formigas, mosquitos, mamíferos e células humanas por meio de CRISPR. Não é o caso de criar dinossauros, mas existe a expectativa de criar um híbrido de elefante asiático com fragmentos de material genético de mamutes extintos há 4 mil anos. Controvérsias e debates éticos à parte, as possibilidades são enormes. Possibilidades de cura para doenças como herpes, VIH e muitos tipos de cancro nunca foram tão reais. A aplicação eficiente de CRISPR para a eliminação de vírus endógenos porcinos desfez a maior barreira sanitária para o transplante de órgãos de porcos para seres humanos. A utilização de CRISPR também permitirá a transmissão de mutações desenhadas em laboratório para descendentes, por meio da manipulação do ADN de espermatozoides e óvulos.
Tão importante quanto compreender como viveram os animais da pré-história, é também entender por que foram extintos. Em 2020 revelou-se os motivos da extinção do período Ordoviciano, ocorrida há 445 milhões de anos. De acordo com geólogos do Canadá e Inglaterra, o aquecimento global causado por erupções vulcânicas foi a causa para a primeira extinção em massa conhecida. Estudar as questões do passado é a melhor maneira de garantir conhecimento para lidar com os desafios futuros de nossa própria sobrevivência. Principalmente quando a vida na Terra está de novo ameaçada pelo aquecimento global. Dessa vez não em virtude do choque de placas tectónicas, mas pela ação do Homo sapiens. Uma dessas ações mais predatórias é justamente o desmatamento desordenado que, só na Amazônia, cresceu quase 10% desde 2019, transformando biodiversidade em pasto e carne bovina. Segundo o jornalista Marcelo Leite, a pecuária responde por até metade da crise do clima. Enquanto a insistência brasileira numa cadeia míope de produção de carne nos aproxima do destino dos dinossauros, instituições de pesquisa e empresas dos Estados Unidos e Europa têm se dedicado a produzir proteína animal não pelo abate de animais e tampouco pelo uso de ingredientes vegetais que imitam o sabor da carne, mas pelo cultivo de células de bois, frangos ou peixes em laboratório. Há poucas semanas, uma startup com sede em São Francisco fez a primeira venda comercial de um produto de frango para um restaurante de Singapura, o primeiro governo a aprovar carne feita em laboratório para consumo humano. Há mais de 60 empresas que se dedicam a desenvolver carne sem animais, pasto ou pecuária. Nenhuma delas no Brasil.
São tantas as preocupações que não será fácil manter a “cabeça boa” nos próximos anos, ainda mais depois da Covid-19. Há estimativas que metade da população mundial venha a apresentar sofrimento psíquico grave ou transtorno psiquiátrico por conta da pandemia. O trauma não irá se dissipar mesmo depois que a vacina nos livrar do vírus. Há, portanto, urgência na identificação de alternativas terapêuticas para tratar de tanta gente.
Após um hiato de décadas, pesquisas com psicodélicos estão a produzir resultados importantes, inclusive para o contexto da sociedade pós-Covid. Essas substâncias, capazes de ativar de forma ímpar receptores de serotonina no cérebro, são os novos aliados da psiquiatria no tratamento da depressão, ansiedade, traumas ou risco de suicídio. As contribuições científicas brasileiras sobre o tema são crescentes e de impacto internacional. Esse ano, a equipa de Dráulio Araújo, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), identificou que a ingestão do chá de Ayahuasca é capaz de reduzir sintomas depressivos e inflamação associada em pacientes resistentes a tratamentos convencionais. Já Natália Mota, Sidarta Ribeiro, da UFRN, e Mauro Copelli, da Universidade Federal de Pernambuco, utilizaram análise de grafos para desconstruir o paradigma que associava psicodelia à patologia.
Novos centros de pesquisa nos Estados Unidos e Europa, especializados em ciência psicodélica, operam desde o ano passado, além de um número crescente de empresas que estão a investir ativamente na prospecção dessas substâncias para fins médicos e terapêuticos. Nessa altura do campeonato, não há mais dúvida: cientistas, investidores e stakeholders concordam que psicodélicos serão legais como produtos farmacêuticos na próxima década.
O mundo civilizado já começou a vacinar, investe em carne de laboratório, no cultivo de cannabis e na terapia com psicodélicos. O Brasil de hoje é sua antítese. Enquanto escrevo esse texto o país contabiliza quase 188 mil óbitos por Covid-19, mas, como disse Frei Betto, ‘guardemos o pessimismo para dias melhores’. Enquanto isso, use máscara, pratique o distanciamento social, invista em atividades físicas, na meditação e alimente-se bem. Desejo a todos o melhor 2021 possível, com a esperança de um Ano Novo repleto de descobertas científicas que ajudem a resgatar o melhor da humanidade.
Artigo de Stevens Rehen, autor na MIT Technology Review Brasil.