Biotecnologia

Mar calmo nunca fez bom marinheiro

O estabelecimento de empresas baseadas em conhecimento científico carrega em si o desafio de comunicar dois mundos distanciados pela linguagem: o da ciência com o dos negócios. Estimular a literacia, a divulgação científica à sociedade de modo claro, conciso e simples faz com que estes dois mundos aproximem-se.

Há alguns anos Portugal definiu a implementação de políticas públicas a fim de liderar a bioeconomia azul até 2030. Dadas as riquezas do País em termos de capital natural e humano, isso faz todo o sentido. Muito investimento tem sido aplicado nesse intuito. É preciso reavaliar periodicamente a persistência dos gargalos que impedem que o fluxo desta decisão siga o seu curso rumo ao domínio científico-tecnológico e quiçá do mercado.  Afinal  o objetivo a cumprir é o de gerar mais produtos à sociedade. No caso específico da biotecnologia, representa 2% do valor acrescentado bruto da UE, um setor altamente inovador, comparável aos setores industriais de maior relevo.

Ao agir especificamente nos pontos críticos ou gargalos existentes, a esperança aliada à ação traz o futuro promissor ao alcance de todos. Esta é uma sociedade que procura cada vez mais produtos sustentáveis e ligados à economia circular. Com cada vez mais informação, o peso que cada uma das pequenas ações e escolhas quotidianas deste consumidor faz diferença no cenário. Em certa medida, a escolha cada vez mais consciente influencia a busca das empresas no atendimento das referidas procuras. É uma questão de sobrevivência, afinal não há “planeta B”.

Num estudo de 2013, os autores Paul Oldham , Stephen Hall, Oscar Forero citam que a atividade inovativa humana descrita em patentes foca-se em apenas 4% de todas as espécies taxonomicamente descritas. Isso representa apenas cerca de 1% de todas as espécies existentes no Globo. O imenso potencial encontra-se literalmente submerso. É como se não conseguíssemos ver a base do iceberg. Segundo o Roadmap BLUE and GREEN a prospecção da biodiversidade representa apenas 18% das atividades exercidas por atores do sistema de inovação português.  

A investigação científica, que inclui a prospecção, está na base do tripé: academia – governo – empresa privada. Assim, a academia deve cumprir a sua missão de investigação e formação de recursos humanos altamente capacitados. Neste caso é importante ressaltar a relevância da investigação básica. Eventualmente pode existir algum esforço em investigação aplicada e orientada para produtos. Assim, surgem as spin offs, empresas que nascem a partir do interesse dos investigadores aliada à identificação de uma oportunidade de negócio. No caso da biotecnologia marinha poderia haver mais incentivo à prospecção e à multidisciplinaridade que os estudos requerem: biólogos marinhos, oceanógrafos, microbiólogos, engenheiros, ambientalistas são todos muito bem vindos à equipa.

Na outra extremidade da cadeia de valor, entram as empresas privadas, porém, até chegar a estas, muitos outros elos são fundamentais a fim de produzir os pilotos, escalar, e levar ao mercado. Entre estes elos, podemos citar no caso português o papel dos escritórios de transferência de tecnologia (TTO) e dos Laboratórios Colaborativos ou Colab, por exemplo. Os Colab são organizações multidisciplinares com finalidade de reforçar a ligação entre empresas, centros tecnológicos e universidades. O Roadmap ilustra bastante como o elo “pilotos e escalonamento” mostra-se desequilibrado em relação aos demais, com apenas 7% de instituições dedicadas a este tipo de atividade.

A preparação para a entrada no mercado e comercialização é outro elo que tem menor expressão. Bem como marketing e serviços de suporte após a entrada no mercado. De facto, o estabelecimento de empresas baseadas em conhecimento científico carrega em si o desafio de comunicar dois mundos distanciados pela linguagem: o da ciência com o dos negócios. Estimular a literacia, a divulgação científica à sociedade de modo claro, conciso e simples faz com que  estes dois mundos aproximem-se. E por que não pensar em ministrar aulas de comunicação, marketing e branding aos jovens cientistas? Um modo estimulante de pensar isso é premiar a divulgação mais criativa e simplificada como num “elevator pitch” dos resultados das complexas pesquisas de mestrado e doutoramento.

A multipotencialidade de aplicações da biotecnologia marinha englobam a busca de soluções técnicas para problemas de saúde humana, e, portanto, ligado à indústria farmacêutica, entre outras aplicações possíveis. No setor industrial, enzimas podem ser aplicadas, por exemplo, em produção de detergentes ou papel ou no sector energético, por meio  do cultivo de refinação de microalgas com a finalidade de produzir biocombustível ou biogás. Tais produtos e processos podem exercer papel fundamental na transição energética.

Para citar uma das iniciativas correntes que envolvem estudos colaborativos a fim de solucionar problemas ambientais, como por exemplo, a procura de soluções para degradação de microplásticos. O microplástico, principal poluente nas águas, é um dos graves problemas que ameaçam a vida marinha e as potencialidades ainda não reveladas deste ecossistema, conforme mencionado anteriormente. A conservação e a sustentabilidade dos mares deve ser uma preocupação. Um exemplo é o projeto “Biodegrading Plastics” do programa PRACE. O esforço em pesquisa e desenvolvimento deve culminar em tornar estes processos biotecnológicos economicamente viáveis, o que é um grande desafio. Neste sentido, a parceria com a indústria torna-se  fundamental.

Neste sentido, as ações de aumento da conscientização e que envolvem arte, como por exemplo a exposição Monstros Marinhos, do artista plástico Ricardo Nicolau de Almeida tem o seu lugar. É importante ressaltar que a recolha realizada próximo às praias representa apenas em torno de 30% de toda a poluição dos oceanos. Será um grande desafio imaginar um modo de recuperar o passivo que acumula-se atualmente no meio dos oceanos, nas chamadas gyres. É preciso parar o acúmulo constante.

Em termos de aplicação final da biotecnologia marinha, além da questão ambiental, há possibilidades na área alimentar. Além disso, a nutrição animal (ração), e a produção de energia renovável também são tão interessantes quanto a primeira. Mas a cosmética e a farmacêutica, com o seu imenso potencial são afetadas por algumas complexidades. As complexidades revelam-se em termos dos estudos clínicos, das condições de manufatura, que exigem necessidade de geração de biomassa em determinadas condições quali e quantitativas, além da regulamentação envolvida. Neste caso, o estabelecimento de parcerias com o setor privado pode ser uma solução viável e que deve ser ponderada.

O contexto pandémico em que vivemos revelou com clareza a fragilidade e a condição de dependência tecnológica neste sentido. Neste caso, não apenas a biotecnologia marinha, mas revelou a necessidade de investimentos e incentivos em relação a parcerias a fim de estabelecer instituições no País vocacionadas à produção de testes de diagnóstico, medicamentos e vacinas. O pequeno número de atores estabelecidos no território português é algo que merece atenção da sociedade. Sem dúvida que com a pandemia a preocupação com a manutenção da saúde tornou-se numa prioridade.

O governo, por sua vez, deve exercer o seu papel por meio de incentivos, políticas públicas e recursos (inclusive os financeiros). Neste caso específico, o Ministério do Mar tem um papel relevante, mas não apenas este. Ações articuladas entre ministérios produzem grande eficácia na orientação das políticas. Entretanto, a sociedade civil – com reunião de cientistas e empresários – pode dar um empurrãozinho. A Associação Portuguesa da Bioindústria, P-Bio divulgou recentemente um documento bastante completo neste sentido: A Estratégia Bio-Saúde 2030. Um plano estratégico para orientar os caminhos. Portugal, com a atual responsabilidade de presidir a União Europeia, tem a missão de chegar a um acordo sobre o clima. Internamente terá este Governo que estabelecer prioridades, a fim de orientar e fomentar o trabalho colaborativo.

Segundo a definição do dicionário Merriam Webster, “colaboração” trata-se da associação de pessoas para benefício comum. Neste caso, o benefício comum é o bem estar da população mundial, ao viver num Planeta onde as pessoas usam os recursos naturais com sabedoria, em que usam as ferramentas existentes para prospectar e onde estão todos alinhados ao propósito comum de não explorar à exaustão os recursos escassos, mas de encontrar recursos alternativos, preferencialmente renováveis. A conectividade, a transformação digital, a quebra das barreiras físicas e geográficas estabeleceu uma nova ordem.

Bem mar calmo nunca fez bom marinheiro. Assim, nessas vagas de incerteza navegamos. Mas é preciso manter o foco para não perder a direção. Esta é uma lição aprendida ao velejar. Nesta nova ordem, a biotecnologia pode vir para resgatar o foco coletivo, ao invés da perspectiva individualista. Ao direcionar esforços para a recuperação de resíduos é possível tentar livrar o nosso Planeta dos graves problemas como a poluição por plásticos no oceano. Aliado a isso, no pensamento de aprendizagem contínuo, a aprender com a natureza, ao ouvirmo-nos uns aos outros numa verdadeira democracia da diversidade e inclusão, usando todos os recursos tecnológicos como meio de aprender com experiências relevantes de outras Nações podemos alcançar o próximo nível.

Desde a bioprospecção até a biologia sintética é possível alcançar produção industrial de enzimas e novos materiais. Ao aliar todo o conhecimento laboratorial à biologia computacional, o que é conhecido como biologia in silico, alguns caminhos podem ser percorridos mais eficazmente no sentido da liderança portuguesa na biotecnologia azul. A promoção da ligação destes mundos aparentemente distantes: tecnologia de informação e comunicação, robótica, IA com biologia e biotecnologia é uma promessa em que algumas empresas apostam.

Se a pesquisa translacional puder estabelecer conexões entre a ciência básica e a inovação será possível pensar em gerar produtos com aplicações na saúde humana, produção de fármacos, vacinas e outros. De facto, se em alguns anos, a história a ser contada for esta, isso significará que os esforços foram orientados, que as ações foram coordenadas e que o País mostrou a sua força. O objetivo pode ser atrair investimento estrangeiro ao País, estabelecimento de empresas que gerem emprego altamente qualificado. 

Navegar é preciso!

Artigo de Priscila Rohem dos Santos, Autor – MIT Technology Review Portugal

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