Segundo a ONU, até 2050 a população mundial alcançará o patamar de 9,7 mil milhões de habitantes e mais de 60% viverá em áreas urbanas, a que chamamos genericamente de cidades (EREMIA; TOMA; SANDULEAC, 2016). Os centros urbanos, então, precisam de se preparar para atender a essa crescente população, com qualidade e sustentabilidade. Para isso, o uso intensivo da tecnologia é o caminho que já tem contribuído para melhorar a qualidade de vida e o acesso a serviços em todo o mundo. E tecnologias como a Internet das Coisas, Big Data e Inteligência Artificial contribuirão cada vez mais para a construção das chamadas cidades inteligentes. Mas o que seria uma cidade inteligente e quais os benefícios que ela pode trazer para seus cidadãos?
O que é uma cidade inteligente?
De uma maneira simples, podemos definir uma cidade inteligente como aquela que usa a imensidão de dados e tecnologias para melhorar a qualidade de vida dos seus cidadãos. Segundo Eremia, Toma e Sanduleac, (2016), “a inteligência de uma cidade é dada pelo conjunto de infraestruturas físicas e legislativas que apoiam o desenvolvimento económico, garantem a inclusão social e permitem a proteção do meio ambiente”. Para que isso seja de facto uma realidade, o McKinsey Global Institute (2018) – MGI – elencou três camadas que trabalham interligadas para tornar uma cidade inteligente:
- Base tecnológica;
- Aplicações personalizadas para as necessidades da cidade;
- “Engagement” dos cidadãos, empresas e governo local no uso das aplicações e soluções digitais.
Dessa forma, os dados que são recolhidos e analisados acabam por ajudar a população e administradores públicos a tomar decisões rápidas e efetivas, baseadas em factos que acontecem em tempo real, entendendo as mudanças em padrões de procura.
Vamos falar um pouco mais de cada uma dessas camadas, começando com a base tecnológica. Tecnologias emergentes como Internet das Coisas (IoT – Internet of Things), Big Data, Inteligência Artificial, robótica e rede de dados móveis de 5ª geração (5G) – que permitem a conexão de milhares de dispositivos e sensores – são determinantes para que uma cidade possa se tornar uma cidade inteligente, tornando-se mais habitáveis e responsivas. E essas tecnologias não são apenas catalisadoras para atividades de back office: contribuem, em conjunto com os apps e smartphones, para melhorar diretamente a vida do cidadão.
Aí chegamos à segunda camada: aplicações personalizadas para as necessidades da cidade. Hoje é possível encontrar várias apps que transformam uma gigantesca base de dados brutos em alertas, ações e ideias para a administração e população. Finalmente, para que tudo funcione e realmente dê frutos, o engagement de todos é fundamental. Essa é a terceira camada, fundamental para o sucesso de uma cidade digital, uma vez que nada adianta termos tecnologia e apps se esses recursos não são usados pela população, governo e empresas. Esse é o ponto fundamental para que uma cidade se torne realmente inteligente.
Como uma cidade inteligente pode melhorar a vida dos cidadãos?
Segundo o relatório da MGI (McKinsey Global Institute, 2018), apps de cidades inteligentes podem melhorar a qualidade da vida urbana em vários aspectos, desde segurança, mobilidade, saúde e até no relacionamento entre os cidadãos. A figura a seguir mostra as principais características e ferramentas, que fazem com que uma cidade se torne inteligente (EREMIA; TOMA; SANDULEAC, 2016):
Figura 1 – Características e ferramentas de uma cidade inteligente
Fonte: Adaptado de Eremia, Toma e Sanduleac (2016)
Destacamos, a seguir, a transformação que uma cidade inteligente pode trazer para as áreas de segurança e mobilidade, saúde, meio ambiente e participação social.
Cidade inteligente segura e com maior mobilidade
Na área de segurança, as apps têm o potencial de reduzir os índices de fatalidades. Isso porque é possível fazer o mapeamento de áreas de criminalidade em tempo real e usar técnicas estatísticas para se determinar padrões e, com isso, ter um policiamento preditivo, antecipando o crime antes que ele aconteça. E isso não é um filme de ficção como o Minority Report. É o uso de uma grande base de dados (big data), enviados e recolhidos por sensores, câmeras e apps de cidadãos e empresas, sobre os quais são aplicadas técnicas avançadas de análise estatística e algoritmos de inteligência artificial. Assim, a administração municipal pode direcionar os seus escassos recursos financeiros e de pessoal para mitigar crimes em regiões previamente mapeadas, reduzindo o índice de criminalidade. E tudo isso é possível sem colocar em risco as liberdades civis e privacidade dos cidadãos e sem estereotipar regiões específicas da cidade. E não é só na área de policiamento que as apps podem ajudar. Os dados gerados pelas apps e sensores podem ajudar na fluidez do trânsito, sincronizando semáforos e até desviando o tráfego por rotas alternativas menos congestionadas. E em caso de necessidade de atendimento de urgência, como os serviços prestados por ambulâncias e bombeiros, a cidade pode se configurar para criar rotas livres para que os veículos de emergência cheguem mais rapidamente ao local do incidente, ganhando minutos preciosos que podem salvar vidas.
As cidades inteligentes podem otimizar o tempo das locomoções diárias dos seus cidadãos. Além da possibilidade de sugerir rotas alternativas menos congestionadas, as apps podem manter os utilizadores de transporte público informados sobre eventuais atrasos, por meio de sensores IoT instalados nas vias públicas. Assim, os cidadãos podem programar-se melhor, ganhando tempo e tendo um serviço de qualidade, confiável. A sincronização inteligente de semáforos tem o potencial de reduzir o trajeto médio nas cidades. Além disso, aplicações de estacionamento inteligente podem direcionar os motoristas diretamente para as vagas disponíveis, eliminando o tempo gasto circulando inutilmente pelos quarteirões da cidade, o que aumenta o índice de congestionamento.
Ainda em relação à segurança, é possível identificar áreas de risco, especialmente em caso de calamidades como chuvas torrenciais, que aumentam a probabilidade de alagamentos e enchentes, como acontece de forma recorrente em cidades como São Paulo.
Controlo da Saúde para uma vida melhor
Uma cidade digital pode também melhorar o atendimento e monitorização da saúde dos seus cidadãos. Já existem aplicações que ajudam a monitorar doenças crónicas, como diabetes e doenças cardiovasculares. É possível também fazer agendamento de consultas, exames e recolhas por meio de aplicações. Além disso, com a pandemia, a telemedicina acabou por ser autorizada no Brasil, com a chancela do Conselho Federal de Medicina, ou seja, o atendimento médico em domicílio de forma virtual. É possível também prescrever medicamentos por meio de ferramentas tecnológicas e controlar a entrega de medicamentos para a população de forma centralizada, com uso de aplicações. Outra possibilidade que fornece a tecnologia nessa área é o controlo de stock desses medicamentos de forma automatizada, com início de processos de compra no tempo certo, para que não haja falta nas farmácias públicas. As aplicações também poderiam substituir com vantagens a velha carteira de vacinação em papel, avisando ao cidadão e ao serviço de saúde sobre a necessidade de aplicação de vacinas. Outra possibilidade seria interligar apps e gadgets, como relógios inteligentes, que monitorizam constantemente pacientes críticos, enviando alertas para o médico e até para o serviço de atendimento médico de urgência, em caso de necessidade. Dessa forma, podemos ter um serviço médico público de maior qualidade, com atendimento adequado para melhorar a qualidade de vida das pessoas.
Na pandemia, a tecnologia acabou por ser utilizada em algumas cidades para monitorização do índice de distanciamento social, com o objetivo de retardar a propagação da pandemia. Em São Paulo foi criado o SIMI-SP (Sistema de Monitorização Inteligente de São Paulo), que monitoriza o deslocamento das pessoas cruzando dados das operadoras de telefonia móvel. As informações são anonimizadas, mas os dados georreferenciados permitem que o governo verifique se as ações de distanciamento social estão a ser efetivas.
Cidades Inteligentes e o meio-ambiente
Grandes centros urbanos acabam por sofrer com a questão ambiental. No entanto, em cidades inteligentes é possível melhorar os índices ambientais por meio de aplicações e sensores distribuídos pela cidade, que possam controlar de forma inteligente os sistemas de automação predial, tarifação dinâmica de energia elétrica, além das já citadas aplicações de mobilidade urbana, reduzindo a emissão de gases poluentes.
Outra possibilidade é a monitorização do consumo de água dos cidadãos, com sensores, apps e medidores inteligentes, emitindo alertas em caso de gasto excessivo, com base no histórico, evitando o desperdício e até mesmo identificando vazamentos logo que ocorram. Soluções similares podem rastrear os resíduos sólidos gerados pelas famílias, orientando quanto ao melhor meio de descarte e incentivando a recolha seletiva, para não prejudicar o meio-ambiente. Há, ainda, a possibilidade de utilizar sensores de qualidade do ar, que podem ajudar a identificar as causas da poluição, servindo como base para o planeamento de ações e projetos para endereçar esses problemas.
Cidades inteligentes melhorando o relacionamento entre os gestores públicos e os cidadãos
As aplicações podem melhorar a comunicação entre os cidadãos e os gestores públicos, permitindo o relato em tempo real de problemas como, por exemplo, buracos nas vias públicas que precisam de ser consertadas. Ou seja, podem – e devem – ser uma ferramenta fundamental para a efetivação de políticas públicas diversas.
Segundo o MGI (McKinsey Global Institute, 2018), aplicações de relacionamento entre cidadãos e o governo local triplicam o sentimento de conexão e proximidade com os gestores públicos. Esse tipo de ação torna os governos locais mais receptivos e com presença ativa em todas as localidades da cidade. Tais aplicações, além de serem um canal de comunicação e emissão de alertas para a população, também conseguem recolher dados e informações do cidadão, sendo uma via de mão dupla, que melhora a qualidade de vida na cidade. É possível, até mesmo, implantar políticas de participação popular nas decisões sobre a cidade, como um processo de orçamento participativo, por exemplo. Essa participação popular é, inclusive, incentivada pela nossa Constituição Cidadã e as apps seriam uma forma de concretizar a ideia dos constituintes.
Caminho para a cidade do futuro
As cidades inteligentes são o caminho para que a qualidade de vida nos grandes centros urbanos se torne cada vez melhor. Contudo, não é um caminho fácil, especialmente quanto à implantação da infraestrutura tecnológica, base fundamental para o conceito de cidade inteligente. O importante, sem dúvida, é conhecer os benefícios para o cidadão e também para o município e criar um plano de implantação com objetivos a curto, médio e longo prazo. Assim, com planejamento, é possível melhorar a qualidade de vida nas cidades com uma verdadeira revolução digital.
Artigo de Fabio Correa Xavier, Autor – MIT Technology Review Brasil