Os NFTs chamaram a atenção das pessoas, transformando-se numa verdadeira febre este ano. Talvez porque seja um assunto divertido e está no dia a dia das pessoas. Afinal, quem não gosta de música, jogos, fotografia, artes e desportos?
Esse artigo traz um panorama geral dos NFTs, mostrando como a tecnologia Blockchain foi decisiva para a sua popularidade e para a transformação do modo como consumimos arte e cultura.
O que significa NFT, afinal?
NFTs é o anacronismo para Non Fungible Tokens, tokens não fungíveis numa tradução literal para português. São um tipo de token, e podem representar a propriedade de bens digitalmente escassos, como peças de arte, uma música, um pedaço de um apartamento, um nome de domínio na Internet, colecionáveis, dentre outros.
Dos jogos às redes blockchain
Apesar do crescente interesse por NFTs desde o final do ano passado, os ativos digitais não fungíveis e a sua representação em tokens não fungíveis não são uma novidade. Moedas digitais em jogos eletrónicos, pontos de companhias aéreas já existiam antes do surgimento do primeiro blockchain.
Mas um jogo representava os seus itens colecionáveis de um modo diferente de um sistema de bilhetes para eventos. O utilizador de um jogo eletrónico só conseguia comprar uma ferramenta ou uma skin na plataforma daquele jogo, e não conseguia vender o seu NFT no Mercado Livre, por exemplo.
As primeiras experiências de NFTs em blockchains começaram com o surgimento dos colored coins, uma classe de metadados que representavam e geriam ativos do mundo real no topo do blockchain Bitcoin. Apesar de originalmente projetado para possibilitar transações da criptomoeda, a linguagem de script da rede Bitcoin permitia armazenar pequenas quantidades de metadados, usadas para representar instruções de manipulação de ativos.
No blockchain Ethereum, o primeiro projeto NFT foi o Cryptopunks lançado em junho de 2017, construído pela Larva Labs, que consistia em 10.000 punks colecionáveis e únicos.
O facto dos Cryptopunks “viverem” na rede Ethereum, tornou-os interoperáveis em vários mercados e inúmeras carteiras digitais.
Mas foi no hackathon ETH Waterloo, onde NFTs em blockchains deram um salto, com o lançamento dos famosos Cryptokitties, um jogo que permite colecionar e criar gatinhos virtuais.
Quem acompanhou a febre dos gatinhos, costuma mencionar os Cryptokitties como um importante exemplo de como a adoção em massa pode afetar as redes públicas de blockchain. Isto porque, desde o lançamento da plataforma de jogos no final de 2017, os utilizadores aumentaram em mais de 1,5 milhão o número de transações na rede, chegando a representar até 25% do tráfego total do blockchain Ethereum nos horários de pico. Veja na figura abaixo.
Fonte: DappRadar
Algo muito parecido como esperar por um Uber na hora de ponta, esses momentos de tráfego intenso diminuem a velocidade e aumentam drasticamente as taxas de transação no blockchain. Consequentemente, isso levou a atrasos nas vendas planeadas de token, distribuição de criptomoedas e outras transações ETH não relacionadas aos Cryptokitties devido ao congestionamento da rede. Já comentamos sobre a escalabilidade dos blockchains em outro artigo.
Todavia, poucos se deram conta da importância do Cryptokitties para o mercado NFT como um todo.
O jogo utilizou pela primeira vez um sistema sofisticado de incentivos, tendo o cuidado de reservar determinados NFTs para uso posterior como ferramenta promocional, além de valer-se de um contrato de leilão que, mais tarde, se tornaria um dos principais mecanismos para precificar um NFT.
Mas a inovação trazida pelos Cryptokitties não parou por aí…
O verdadeiro “salto do gato” do Cryptokitties: a padronização
O projeto foi um marco principalmente por introduzir o “primeiro padrão para representar ativos digitais não fungíveis”: o ERC-721.
O ERC-721 é um padrão de contrato inteligente que fornece uma maneira padronizada de verificar quem possui um NFT e uma maneira padronizada de “mover” ativos digitais não fungíveis.
Outros padrões usados em NFTs, além do ERC-721, são o ERC-1155 que traz a ideia de semifungibilidade, e o ERC-998 que fornece um modelo pelo qual os NFTs podem possuir ativos fungíveis e não fungíveis.
Apesar do blockchain Ethereum ser onde a maior parte da ação está a acontecer hoje, existem vários outros padrões NFT emergindo em outras cadeias blockchain como Kusama, Flow, Solana, dentre outras. Por exemplo o dGoods, criado pela equipa Mythical Games, que está focado em fornecer um padrão cross-chain e que utiliza blockchain EOS.
Mas por que os padrões de token são críticos para NFTs?
Porque são uma forma de libertar valor, possibilitando que NFTs possam ser negociados não só na plataforma em que foram criados, mas em qualquer plataforma o que, consequentemente, possibilita criar novos mercados e alcançar novos consumidores.
Vantagens adicionais trazidas pela tecnologia blockchain
Além da padronização de atributos básicos dos NFTs como propriedade, transferência e controlo de acesso, a tecnologia blockchain possibilitou incorporar padrões adicionais de atributos aos NFTs, como especificações de como exigir um NFT, por exemplo.
A padronização via blockchain possibilitou ainda a interoperabilidade. Agora, os NFTs podem mover-se mais facilmente entre vários ecossistemas, sendo visualizados imediatamente em dezenas de diferentes provedores de carteira digital, negociáveis em vários mercados e mundos virtuais como o Decentraland.
Uma festa virtual no mundo virtual Decentraland com utilizadores exibindo fantasias conectadas a NFT
Aqui, uma curiosidade: quando Decentraland foi lançado, em 2017, os programadores do mundo digital venderam “terrenos virtuais” por cerca de US $20 cada. Nos anos seguintes, a comunidade virtual Decentraland cresceu, mas permaneceu uma parte pequena e relativamente obscura da Internet — até o boom do NFT. Agora, um punhado de terra no mundo digital Decentraland pode ser vendido por algo entre US $6.000 e mais de US $100.000.
Pois bem, a interoperabilidade dos NFTs só foi possível porque padrões abertos possibilitados pela tecnologia blockchain fornecem uma API clara, consistente, confiável e com permissão para leitura e gravação de dados.
A interoperabilidade, por sua vez, ampliou a negociabilidade dos NTFs, ao possibilitar o livre comércio em mercados abertos. Ou seja, NFTs baseados em blockchains possibilitam aos utilizadores moverem os seus ativos não fungíveis para fora dos seus ambientes originais, e tirar proveito de recursos sofisticados de negociação, como leilões, licitações, além da capacidade de transacionar em qualquer moeda, desde stablecoins e moedas digitais específicas de determinado aplicativo, a criptomoedas como bitcoin, ether e dash.
Essa vantagem da negociabilidade representa, portanto, uma transição de uma economia de NFTs inicialmente fechada, para uma economia de mercado livre.
NFTs e as suas qualidades únicas
Cada NFT tem propriedades diferentes que são armazenadas em tokens com metadados de imutabilidade e escassez comprovadas.
O número do NFT pode ser verificado no blockchain, a propriedade dos NFTs é facilmente transferível, além de ser à prova de fraude.
Embora NFTs possam ser implementados em qualquer blockchain que suporte a programação de contrato inteligente, os exemplos mais populares são os padrões ERC-721 e ERC-1155 no Ethereum, como já mencionamos anteriormente.
ERC-721 é um padrão comum para a criação de tokens não fungíveis, que permite a criação de contratos inteligentes (pedaços de código de software) que podem ser usados para criar tokens distinguíveis com propriedades diferentes.
O ERC-1155 é a próxima etapa na criação de tokens não fungíveis, pois permite a criação de contratos que suportam tokens fungíveis e não fungíveis e foi criado por Engine, um projeto com foco em games baseados em blockchain, como o World of Warcraft.
A evolução do mercado NFT
Ecossistema NFT atual.
Depois da integração da tecnologia blockchain aos NFTs em 2017, os anos de 2018 e 2019 viram um grande crescimento dentro do ecossistema com o lançamento de mais de 100 projetos NFT.
Desde então, o mercado NFT vinha prosperando continuamente, liderado pelas plataformas OpenSea e SuperRare.
A integração no ecossistema NFT tornou-se mais fácil à medida que carteiras Web3 como a Metamask foram evoluindo, e a Dapper Labs também lançou uma carteira Dapper que não exigia pagamentos de gás (custo necessário para executar uma transação no blockchain ethereum).
Também contribuiu para a evolução do mercado, o surgimento de sites como NonFungible e nftCryptoNews (plugue sem medo) que se aprofundaram nas métricas, guias de jogos e informações gerais sobre o espaço NFT.
Pois bem, até meados de 2020, os volumes transacionados eram pequenos, se comparados com outros mercados de criptoativos, mas cresciam a um ritmo acelerado.
Mas foi em 2021 que o interesse pelo mercado NFT teve um crescimento nunca antes visto.
O tsunami NFT em 2021
No primeiro quadrimestre deste ano, os media financeiros e convencionais ficaram paralisados com a novidade dos NFTs e a adoção deles por investidores com muita bala na agulha.
De repente, no primeiro trimestre, os NFTs estavam por toda parte e a infraestrutura para dar suporte às suas negociações aproveitou o interesse do mercado para levantar fundos em grande escala. Isso se acelerou no final de março e continuou no segundo trimestre.
Veja abaixo a linha do tempo NFT ao longo de 2021.
O volume de transações NFT multiplicou-se mais de 25 vezes desde dezembro de 2020, eclipsando todo o crescimento de outras inovações na indústria de criptoativos – e para os desavisados, a NFT faz parte desta indústria. O volume de negócios caiu ligeiramente no final do terceiro trimestre de 2021, e ficou em torno de US $100 milhões de dólares entre abril e começo de maio.
NBA Top Shot e CryptoPunks são as duas plataformas NFT de maior volume, com milhões de dólares em volume diário. Ambos viram um aumento na atividade no primeiro trimestre de 2021, e as vendas até agora em abril mantiveram-se estáveis, com vendas diárias médias entre US $2 milhões a US $6 milhões cada.
Quem compra um NFT do NBA Top Shot, o que está adquirindo?
Para quem não está familiarizado, o NBA Top Shot são momentos da história da NBA, liga profissional de basquetebol americano, que estão a ser adquiridos via NFT por milhares de fãs da NBA de todo o mundo.
Fonte: DappRadar
Pois bem, na compra e venda de um NFT, estamos a lidar com três partes: estamos a lidar com o autor deste trabalho (fotógrafo do momento NBA, o programador de um jogo, ou o artista de uma arte digital), estamos a lidar com o criador do NFT e, por fim, estamos a lidar com um comprador.
Ao adquirir um NFT está, em princípio, apenas a receber os direitos sobre o NFT, os direitos de propriedade dos direitos de se gabar de que tem alguma conexão com esse trabalho. Todavia, não necessariamente adquirirá o direito de propriedade intelectual para usar aquela obra – não terá o direito de copiá-la, distribuí-la, executá-la, a menos que tais direitos tenham sido designados especificamente para si.
A análise legal de um NFT é muito semelhante ao que seria, se não houvesse um NFT.
Os NFTs e Blockchain, a sua tecnologia subjacente, podem criar um sistema mais justo, ou incentivar ativos desequilíbrios na economia da Web?
Dois eventos aparentemente não relacionados trouxeram luz sobre o problema do controlo centralizado de informações que corrói a integridade da economia da Internet.
O primeiro foi um episódio envolvendo o conselho de supervisão do Facebook. O outro evento relacionado à decisão da Reuters de retirar o URL “blogs.reuters.com” (que levou Felix Salmon, agora redator da Axios, a reclamar que o serviço de notícias de 169 anos havia “vaporizado” as suas publicações anteriores).
Pois bem, estes dois factos trouxeram novamente aos holofotes o problema do controlo centralizado de informações que compromete a integridade da economia da Internet. As questões levantadas estão longe de serem novidade, e decorrem do modelo de negócios da Internet que surgiu com o início da era da Web 2.0, no início dos anos 2000.
Tais questões ressurgem, contudo, num momento em que as ideias da Web 3.0 (inspiradas em criptografia, descentralização e imutabilidade e escassez comprovadas via tokens não fungíveis) tornam-se possíveis soluções. Mas como NFTs poderiam ajudar?
Os NFTs combinados com a tecnologia Blockchain podem ser úteis, porque representam um primeiro e modesto passo em direção à solução de um dos principais problemas da Web 2.0: a replicabilidade digital.
E ao estabelecer a escassez digital por meio de tokens únicos registados em blockchains, bem como ao manter a promessa de transações de media digital ponto a ponto (em redes distribuídas), os NFTs sugerem novas abordagens para empresas de media e marcas se envolverem diretamente com os seus públicos sem a intermediação das plataformas.
Ainda há muitas questões a serem resolvidas no espaço NFT, sejam de ordem jurídica, sejam relacionadas ao desenvolvimento da sua tecnologia subjacente – a tecnologia blockchain.
Contudo, pode-se estabelecer padrões garantindo que direitos especiais ao conteúdo associado a NFT não sejam controlados por uma plataforma de custódia separada, mas sim sejam atribuídos ao proprietário do token e criptograficamente agrupados com o próprio token para que possam ser facilmente transferidos para o comprador em cada venda posterior.
E tal é possível, através da programabilidade dos NFTs via contratos inteligentes (pedaços de código de software na rede blockchain), que garantem uma “recompensa” aos criadores de conteúdo, toda vez que o seu trabalho é negociado; o que muda completamente a dinâmica dos direitos autorais e da propriedade intelectual de determinado conteúdo em meio digital.
Se no código de contrato inteligente dos NFTs está programada uma “divisão da receita”, imutável, talvez os criadores de conteúdo não precisem se preocupar mais com a propriedade legal do seu trabalho.
Chegando ao destino
Entre outros recursos de design, este modelo de desenvolvimento de negócios na Internet exigirá o armazenamento da versão de génese de conteúdo NFT em local permanente que nenhuma entidade centralizada (empresa, plataforma de media social, serviço de hospedagem etc) possa derrubar.
Também, para garantir que o mercado futuro de conteúdo digital não tenha as deficiências das redes cativas e centralizadas dos monopólios atuais, este novo modelo de economia da Web também precisará de identidade autos soberana, corretoras de tokens descentralizadas (conhecidas como DEXs) e protocolos de interoperabilidade.
Já há uma parte da indústria blockchain, como mentes brilhantes a trabalhar arduamente nessas ideias que lidam com o problema da confiança num ambiente descentralizado: modelos de armazenamento descentralizado como Filecoin, Swarm e Sia, modelos em torno da infraestrutura de uma web descentralizada como o Polkadot (protocolo de interoperabilidade para blockchains liderado pela Web3 Foundation), e Cosmos (rede de blockchains capaz de se comunicar de forma descentralizada).
Quando combinadas, e devidamente amadurecidas, esses modelos desenvolvidos pela indústria blockchain podem transformar completamente não só o mercado de NFTs, mas toda a economia da Web.
Claro que só o tempo dirá se NFTs e a indústria blockchain realmente criarão um sistema mais justo ou reforçarão antigos desequilíbrios. Contudo, os progressos até agora são bastante promissores.
Artigo de Tatiana Revoredo, Autor – MIT Technology Review Brasil