Governança

Quem são os verdadeiros donos da vacina?

O debate sobre a propriedade intelectual no desenvolvimento científico e tecnológico para a produção de vacinas contra o coronavírus envolve empresas privadas e o financiamento público desses projetos.

Hoje, enquanto os números de pessoas infectadas e de mortes causadas pela Covid-19 se avolumam, todos os olhos estão voltados para as grandes companhias farmacêuticas como Pfizer, AstraZeneca, Johnson & Johnson, Sinovac entre outras que são responsáveis pelo desenvolvimento e produção de vacinas contra o coronavírus. Reconhecida como uma das medidas mais efetivas para conter a pandemia, todos os governos do mundo esperam por anúncios de novas entregas, de aumento da produção e quem sabe o desenvolvimento de novas vacinas. Com raríssimas exceções, a situação comum é a escassez de imunizantes e a preocupação com o aumento de contágios, mortes e novas variantes.

Em busca de soluções para superar a escassez e garantir o acesso de países pobres às vacinas contra a Covid-19, um bloco de países liderados por Índia e África do Sul apresentou perante a Organização Mundial do Comércio (OMC) uma proposta de suspensão temporária das patentes enquanto durar a pandemia. Com a suspensão da exclusividade de produção e comercialização, espera-se que outros laboratórios públicos ou privados possam produzir mais imunizantes a preços acessíveis. A proposição conta com o apoio de algo em torno de 100 países e recentemente obteve o suporte de peso dos Estados Unidos e da China. Todavia, para se alcançar uma decisão na OMC é preciso a unanimidade dos seus membros e a proposição ainda enfrenta a resistência declarada do Reino Unido e de países da União Europeia, como a Alemanha.

Esse debate internacional sobre a suspensão das patentes levanta as seguintes questões: quem é ou quem devia ser o dono das vacinas? A resposta direta e simples para a primeira questão é quem detém a patente. Quanto à segunda questão, é menos direta, já que se observa que a maioria das vacinas recebeu vultosos recursos públicos para pesquisa e desenvolvimento.

Na realidade, a maioria das vacinas desenvolvidas recebeu financiamento estatal por meio de instrumentos de compras públicas de inovação, como a encomenda tecnológica. Nos Estados Unidos, por meio da operação Warp Speed (velocidade de dobra), foram destinados 18 mil milhões de dólares, desde maio de 2020, para laboratórios desenvolvedores da própria vacina e fornecedores de insumos, com o objetivo de acelerar desenvolvimento, produção e distribuição de vacinas contra a Covid-19.

Dos US $18 mil milhões, US $12 mil milhões foram reservados para 6 contratos de pesquisa e desenvolvimento assinados com a Moderna, Pfizer, Sanofi, Novavax, Johnson & Johnson e AstraZeneca. No Brasil, o Governo Federal, por meio da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), celebrou um contrato de Encomenda Tecnológica no valor estimado de R$ 1,9 mil milhões de reais, cujo objeto é o fornecimento de Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) para a produção de 100,4 milhões de doses de vacina e a transferência tecnológica combinada com a licença de uso para a produção nacional do IFA exclusiva para o território nacional.

Um elemento comum que se pode destacar dos contratos citados, além dos elevados valores investidos oriundos dos cofres públicos, é que os direitos de propriedade intelectual, em especial as patentes, ficaram com as farmacêuticas contratadas. Isso significa que recursos públicos foram investidos em pesquisa, desenvolvimento e na produção de vacinas contra a Covid-19, porém quem ficou com o direito exclusivo de produzir e comercializar os imunizantes foram as empresas privadas.

Interesse público ou propriedade privada?

O recebimento de significativo financiamento público para o desenvolvimento e produção das vacinas de combate à Covid-19 é uma das principais questões relacionadas ao debate em torno da proposição de suspensão temporária das patentes. Isso porque mesmo tendo contribuído significativamente para o seu desenvolvimento, os governos terão que pagar por cada dose de vacina a ser aplicada, especialmente se forem necessárias doses extras para proteção efetiva ou esquema de vacinação anual como ocorre contra a influenza sazonal. Por essa razão, alguns especialistas questionam o modelo adotado por tais contratos, que, ao buscarem uma solução efetiva para o curto prazo, deixaram a posição dos governos fragilizada no longo prazo.

Em contraponto, as grandes farmacêuticas opõem-se à proposição de suspensão das patentes por alguns motivos declarados. Thomas Cueni, diretor geral da Federação Internacional das Farmacêuticas (IFPMA), defendeu em publicação no Financial Times que o aumento da capacidade de produção é a melhor resposta ao problema da escassez de vacinas e não a suspensão dos direitos de propriedade intelectual. Acrescentou ainda que a proposição faz vista grossa para a complexidade da cadeia global de produção de vacinas. Tomando a vacina da Pfizer como exemplo, aponta que é composta de 280 ingredientes oriundos de 19 países.

De forma surpreendente e isolada, a farmacêutica Moderna disse que não impediria ninguém de produzir vacinas a partir da sua patente. Os dirigentes da farmacêutica esclareceram que não acreditam que isso afetará as suas vendas, de um lado, porque não conseguem mais atender pedidos para este ano e para o próximo ano já estão perto do limite, e por outro lado, por causa do desafio de dominar a tecnologia e obter os insumos necessários.

Da Índia, país líder da proposição e detentor de alguns dos maiores laboratórios farmacêuticos do mundo, ouve-se de Vineeta Bal, imunologista do Instituto de Ciência, Educação e Pesquisa da Índia, que, apesar de ser cheia de boas intenções, a proposição, pelo menos no curto prazo, não parece ser uma solução efetiva. Bal esclarece que os laboratórios indianos já estão a atrasar as entregas atuais por estarem no limite das suas capacidades de produção e sofrendo com a escassez de insumos para a produção de vacinas.

De uma forma geral, os especialistas admitem que a suspensão temporária das patentes não é uma solução de curto prazo, sobretudo porque a capacidade de produção mundial de vacinas está no limite. Ademais, apontam que a dificuldade de obter insumos, montar fábricas e treinar pessoal qualificado seguramente não ocorreria num horizonte menor que um ano.

Para o curto prazo, as opiniões das partes interessadas parecem convergir no sentido de que a melhor solução é a cooperação entre países ricos e pobres, com a doação de doses sobrando, e entre farmacêuticas, com, não somente o licenciamento das patentes, mas também a transferência de conhecimentos e partilha de pessoal, para efetivamente aumentar a produção mundial de doses.

De todo modo, ainda que não seja uma solução de curto prazo, a suspensão temporária das patentes, além de representar um gesto importante dos países e organizações internacionais em prol da cooperação internacional para a superação conjunta da ameaça global trazida pela Covid-19, é um ato coerente com a enormidade de recursos públicos, de países como os Estados Unidos, do bloco europeu e mesmo do Brasil, concedidos às farmacêuticas para a pesquisa e desenvolvimento dessas vacinas.

Como se viu, as farmacêuticas ficaram com as patentes das vacinas contra a Covid-19 mesmo tendo recebido bilhões de reais de fundos estatais. Mas, afinal, quem deveria ficar com os direitos de propriedade intelectual nas compras públicas de inovação?

À primeira vista, influenciados pela discussão das vacinas contra a Covid-19, podemos pensar que o mais lógico e óbvio é que os governos que financiaram a pesquisa e desenvolvimento de soluções como vacinas fiquem com os direitos de propriedade intelectual. Porém, como vimos, não foi isso o que aconteceu no caso das vacinas. E a razão para isso podemos encontrar explicitada mais claramente em recente recomendação editada pela Comissão Europeia para as compras públicas de inovação, em que se defende que os direitos de propriedade intelectual fiquem, em regra, com as empresas contratadas, sob o argumento de estímulo ao crescimento económico.

A Comissão Europeia apresentou estudos com evidências que suportam a racionalidade dessa opção, apontando a aceleração da introdução de soluções inovativas no mercado e a redução dos custos das compras públicas. Na operação Warp Speed, foram assinados seis contratos com seis farmacêuticas, sendo que cada uma desenvolveu uma vacina com tecnologia específica. Seria praticamente impossível ao governo norte-americano dominar seis diferentes tecnologias de vacinas e produzir em quantidade minimamente similar ao que cada farmacêutica está fazendo.

Cabe apontar que não é somente a União Europeia que adota essa opção estratégica, sendo que países inovadores como Canadá, Japão, Israel, Coréia e China admitem, em regra, que as empresas contratadas fiquem com os direitos de propriedade intelectual nas contratações públicas, sobretudo nas compras públicas de inovação.

O caminho do meio

Segundo Adalberto Maciel, especialista em propriedade intelectual pela Universidade de Columbia, ainda que as empresas contratadas fiquem com os direitos de propriedade intelectual, há instrumentos que podem ser usados pelos governos quando contratam inovações para melhor alcançar o interesse público perseguido. Um desses instrumentos é a previsão contratual de cláusula de licença forçada em função do desempenho. Um exemplo ajuda a esclarecer a ideia. Numa encomenda tecnológica para desenvolver uma vacina, o governo pode estabelecer que, mesmo que a patente fique com a empresa contratada, devem ser produzidas cem milhões de doses a um determinado preço e prazo, sob pena de ser transferido o direito de produzir a vacina a outro laboratório, seja público ou privado. Com isso, o governo busca garantir a produção de imunizantes suficientes para a população contra a doença.

Outro instrumento muito utilizado é a participação minoritária na companhia contratada ou a previsão de uma taxa sobre a comercialização da solução inovadora. São duas formas que basicamente atingem a mesma finalidade, pois permitem ao governo se beneficiar também do sucesso comercial da solução inovadora que contribuiu para o desenvolvimento.

Enfim, são muitos instrumentos que estão disponíveis nas contratações públicas de inovação, mas não cabe aqui explorar todos em detalhes. Além de tudo, não se pode esquecer que sempre é possível que o governo fique com os direitos de propriedade intelectual, idealmente desde que estejam presentes razões justificadoras, como em situações de extrema relevância para o interesse público. Nos contratos relacionados com a área de Defesa, é muito comum que as informações sejam classificadas e restritas e os direitos de propriedade intelectual fiquem com as Forças Armadas.

Ao fim, voltamos à questão inicial: quem devia ser o dono de uma vacina tão crítica para a superação de uma das maiores crises de saúde da história? É justo dizer que, sendo a criação absolutamente privada, as empresas merecem auferir seus lucros no processo (até para evitar desincentivos à pesquisa e desenvolvimento em situações futuras). Porém, a questão humanitária e o amplo financiamento público disponibilizado ao combate à Covid-19 legitimam em parte a estratégia de suspensão das patentes adotada por diversos governos de países signatários da ideia.

No meio de tantas questões, um ponto parece se solidificar: a importância de se ter uma estratégia nacional para os direitos de propriedade intelectual nas encomendas tecnológicas e nas contratações de inovação que sejam capazes, inclusive, de prever caminhos do meio, onde os interesses públicos e privados possam ser devidamente alinhados em torno de um propósito maior.

Artigo de Hudson Mendonça, Autor – MIT Technology Review Brasil

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