Dizer que as primeiras semanas de aplicação da vacina foram turbulentas seria um eufemismo. Todos os estados dos Estados Unidos estão a lutar contra uma logística mal desenvolvida que causou problemas na entrega e tornou a implantação mais lenta do que o prometido. Enquanto isso, o desastre no Stanford Medical Center, onde um algoritmo para classificar os grupos em potencial que receberiam a vacina conseguiu ignorar os médicos da linha de frente, era a prova de que também era possível sobrecarregar o sistema.
Muitos ficaram intrigados sobre como isso poderia acontecer, dados os meses de tempo de espera para organizar a distribuição. O governo dos Estados Unidos tinha aproveitado uma conferência de imprensa em outubro de 2020 para explicar o papel dos militares quando alegou que seria o líder mundial na distribuição de vacinas.
“Temos os melhores logísticos do mundo no Departamento de Defesa (DOD, em inglês), a trabalhar em conjunto com o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC), para orientar… todos os detalhes logísticos que possa imaginar”, declarou Paul Mango, o vice-chefe de gabinete para políticas do Departamento de Saúde e Serviços Humanos do Estados Unidos. Embora os militares não estejam envolvidos na aplicação de injeções, estes executariam um sistema de vigilância de ponta a ponta para garantir que cada dose da vacina fosse administrada com precisão antes de expirar.
Essa cadeia de abastecimento, no entanto, está sob ataque.
Um farmacêutico em Wisconsin conseguiu sabotar 500 vacinas, aparentemente movido pela sua crença em teorias de conspiração apocalípticas. Não foi exatamente o ataque que a Interpol avisou quando pediu às nações para permanecerem vigilantes contra ameaças do crime organizado em relação ao fornecimento de vacinas, mas mostrou que as fraquezas no sistema estavam lá — e que podem ser uma consequência de más decisões tomadas por pessoas em posições de poder com maior importância.
Soluções temporárias causam problemas
Tornou-se cada vez mais claro que muitos hospitais, farmácias e outras instalações que receberam a entrega de vacinas estão por conta própria: forçados a supervisionar a logística eles próprios, organizar consultas com pacientes e monitorizar as reações. Sob pressão, começaram a tomar decisões precipitadas ou infundadas, ou recorrer a serviços que não foram construídos para fins tão críticos.
Relatórios começaram a surgir sobre como diferentes sites gratuitos, como SignUpGenius, estavam a ser usados para reservas de vacinação em Oklahoma. O sociólogo da Universidade de Princeton, Shamus Khan, narrou como estava frustradamente a atualizar o Eventbrite, um site de serviço de eventos online, para conseguir uma vaga para os seus pais idosos na Flórida. Alguns departamentos de saúde do estado decidiram usar o sistema porque era “a maneira mais rápida, fácil e eficiente” de atender às necessidades urgentes.
Mais tarde, no entanto, foi revelado que algumas pessoas que pensavam ter pago para garantir uma vaga via Eventbrite foram enganadas. Os burlões tinham criado páginas de listagens falsas para induzir as pessoas a entregar o seu dinheiro para agendamentos que não existiam. Os números de telefone dos departamentos de saúde do condado ficaram congestionados o dia todo, e os sites lutavam com a procura, agravando o problema.
O uso de sites de terceiros cria a oportunidade perfeita para um ataque à cadeia de abastecimento de baixa tecnologia. Normalmente, quando pensamos nessas cadeias e crimes cibernéticos, imagens de software malicioso, senhas roubadas ou phishing vêm à mente. Mas nenhuma prática hacker foi necessária neste caso. O que aconteceu na Flórida foi a manipulação dos media na forma de falsificação de identidade: os burlões só precisavam de usar o site da forma como este foi projetado para fugir com o dinheiro de idosos desesperados.
A regra da desinformação
Esses casos são alarmantes por vários motivos. Sites de impostores escondidos em domínios suspeitos para vender produtos falsos tornaram-se comuns durante a pandemia. O mesmo aconteceu com o uso da rede social para conduzir uma guerra de informação de baixa qualidade, alegando que a pandemia é uma conspiração.
Mas se existe uma lei de desinformação, é esta: tudo em aberto será explorado.
Os golpistas vão lucrar com a crise e a confusão, especialmente se o roubo for fácil e os riscos mínimos. Quando o DOD e o CDC deixaram de considerar o último quilómetro para a entrega da vacina, abriram a possibilidade de um ataque à cadeia de abastecimento.
Municípios e hospitais com recursos limitados e infraestrutura básica não estão preparados para pandemias, nem foram informados sobre os riscos de segurança representados por sites de terceiros que ganham dinheiro com a recolha de dados associados às inscrições. Os condados não devem ser deixados sozinhos para lidar com essa questão pontual. Os manipuladores de informação nos media continuarão a usar as suas táticas até que não sejam mais lucrativas, e as autoridades federais devem enfrentar o desafio e fornecer acesso à tecnologia de logística da qual tanto se gabaram em conferências de imprensa. O novo governo promete entregar 100 milhões de doses durante os primeiros 100 dias — mas, para fazer isso, terá que resolver a questão da desinformação, bem como todas as outras problemáticas.
Como nação, devemos tratar essas vacinas como remédios que salvam vidas e garantir que essa carga preciosa seja protegida da mesma maneira que nossos softwares: de ponta a ponta.
—Joan Donovan é o diretor de pesquisas do Shorenstein Center on Media, Politics and Public Policy em Harvard.