Humanos e Tecnologia

Como criar uma cultura de confiança num mundo imprevisível e digital

A confiança é um verdadeiro lubrificante social, sem o qual não existiriam negócios nem colaboração. Com a aceleração digital e a crise da Covid-19, as relações foram transformadas e a consequência é que o líder precisa entender melhor os mecanismos da confiança, mas em particular a vulnerabilidade e reciprocidade, para que essa característica seja parte da cultura da organização no mundo imprevisível e digital onde vivemos.

Em 2009, a Domino ‘s Pizza estava à beira da falência: uma empresa com cultura péssima, fraco atendimento nas lojas, e onde nem mesmo a pizza era considerada boa. Então, em março do mesmo ano, o seu Conselho nomeou um novo CEO, Patrick Doyle.

Dentre das suas primeiras iniciativas estava a campanha “Pizza Turnaround”: como parte dela, o Patrick Doyle apareceu a admitir candidamente num vídeo que, sim, a pizza tinha sabor de cartão, mas que a Domino ‘s estava comprometida a mudar. A partir daí, fizeram várias experiências, todas focadas em melhorar a experiência do utilizador, desde delivery via drone até solicitações via emoji, passando por outras inovações para os pedidos de pizza.

Imagine uma empresa concorrente, que esteja a correr bem (e não prestes a falir, como a Domino´s), e o leitor, como CEO da companhia, apresenta ao conselho iniciativas para implementar um sistema de pedidos via… emoji? Na maioria das empresas, seria ridicularizado, e provavelmente dispensado.

Admitamos: o “Pizza Turnaround” nunca aconteceria se não existisse uma relação de confiança onde sabe que pode experimentar, errar e, ainda assim, sentir-se seguro. O que aconteceu na Domino ‘s?

Patrick Doyle criou uma cultura da confiança, transmitida pela admissão da vulnerabilidade e sensação de segurança, mesmo diante do erro. A experiência fez a empresa viver a inovação na pele. Mesmo sabendo que pizza por emoji, aparentemente, não traz grandes retornos, a verdade é a avalanche de experiências que nasceram a partir da mensagem clara do CEO que “fracassar é sim uma opção” e é parte do processo de inovação, que o business da marca descolou depois disso.

O resultado das atitudes de Doyle foi a valorização das ações da Domino´s em mais de 1800%. Isso mesmo: mil e oitocentos por cento! Em 2019, inclusive, a marca foi eleita pela Fast Company como uma das empresas mais inovadoras do mundo, com mais de 60% das vendas vindo de canais digitais nos EUA.

E, de novo, olhando para a liderança, tudo começou com a implementação de uma cultura de confiança.

Porque uma cultura de confiança é tão importante?

Uma pesquisa feita pela Harvard Business Review e publicada em julho de 2020, demonstrou que um dos grandes desafios que a pandemia trouxe é sobre a relação de confiança entre líderes e equipas.

A verdade é que, embora muitas soluções tecnológicas estejam à nossa disposição, vários líderes sentiram-se desconfortáveis em ter os seus funcionários a trabalhar em casa, assim como os colaboradores ainda têm dificuldade de equilibrar vida e trabalho, com a mesma sensação de insegurança dos chefes, por realizarem as tarefas de casa.

Há reclamações sobre o alvo da preocupação dos líderes, que é a produtividade, muitas vezes em detrimento da saúde dos seus funcionários. Além disso, as reuniões online estão se a tornar um meio para monitorizar e avaliar a atitude dos colaboradores no trabalho.

Realmente, nós tentamos, tentamos e tentamos controlar ao máximo as nossas equipas, mas a verdade é que, para os líderes, isso ainda é difícil e não foge de uma ilusão. O que quero dizer com isso?

Sheryl Sandberg, COO do Facebook, diz que “ninguém tem controlo completo sobre qualquer situação, ainda mais o líder”. E Sandberg está certa. Todas essas reclamações têm a ver com a observação de que a maioria dos líderes tenta lidar com a incerteza do trabalho remoto controlando e monitorizando as tarefas dos funcionários mais intensivamente que antes. É claro que essa estratégia sai pela culatra!

Exibir sinais de comportamento de controlo para a equipa que, na realidade, aparenta ser atitude padrão da empresa em relação à equipa, não é positiva. Pelo contrário, é negativa.

As empresas claramente temem que os seus funcionários relaxem no trabalho. Por outras palavras, ao serem controladores, os gerentes enviam o sinal de que não confiam no trabalho remoto.

Como líderes, somos desafiados. Afinal, estávamos no controlo sem, necessariamente, sermos responsáveis sobre o que ocorre fora da sede da organização. Mas, num mundo imprevisível, como o de hoje, a relação é oposta: as nossas equipas não estão presencialmente ao nosso lado e temos que aprender a liderar com a falta de controlo de tudo, assumindo a nós mesmos a responsabilidade pelo que não controlamos.

O cenário remete-me a uma antiga história budista: uma noite, um homem perdeu as chaves de casa e um amigo o encontrou procurando-as furiosamente embaixo de um poste iluminado.

O amigo perguntou-lhe se ele lembrava onde as teve nas mãos pela última vez, e ele respondeu:

– Lá, naquele campo de arroz.

Então o amigo perguntou, surpreso:

– E por que não está procurando lá?

O homem respondeu, como se fosse óbvio:

– Mas a luz está melhor aqui.

Será que nos acostumamos a procurar as coisas onde tem mais luz, ou precisamos aprender a ir até o campo obscuro para achá-las?

Falta de confiança na pele

Precisamos aprender a liderar também nas áreas em que não temos controlo; caso contrário, é enorme a chance de falha. Olhe só minha experiência quando era um gestor comercial iniciante no Groupon: quando me juntei a eles, bem no início das operações, e as equipas de vendas eram 100% de campo, existia um problema de reuniões fantasmas.

Estas eliminavam a necessidade de demonstrar a nós mesmos, gestores, o desejo por metas de reuniões imputadas no Salesforce, dando uma ilusão de maior controlo. Estávamos atingindo metas de produtividade em nossas cidades; entretanto, gerávamos um comportamento distorcido em que alguns vendedores diziam que iam às reuniões, mas, na realidade, não iam.

Começamos a desconfiar e, no meio de algumas tentativas de recuperar o controlo, parecíamos espiões das nossos equipas. Ligamos para os bares e restaurantes onde as reuniões aparentemente tinham acontecido, para verificar a sua veracidade. Muitas vezes, conseguimos descobrir a trama, ficando furiosos com o funcionário da vez.

Esse comportamento não é justificável de nenhuma maneira. Mas, em vez de apenas pensar “eles estão a quebrar a minha confiança porque estão a mentir sobre as reuniões”, comecei a perguntar-me: “quais são os pressupostos errados que estou a criar para que eles tenham esse comportamento?”.

É como Sheryl Sandberg também diz, nas suas palestras: “não é porque o projeto não foi concluído que meu colega não fez a sua parte”. Na verdade, o projeto não foi concluído porque eu não configurei uma equipa em que o meu colega pudesse ter vontade de fazer parte”.

É a mesma coisa!

O pressuposto errado era que nós tínhamos criado um funil comercial onde, em média, a cada 4 reuniões, saía com um contrato, e por isso cobrávamos 4 reuniões por dia. Por outro lado, tínhamos vários contratos que poderiam ser fechados sem reunião presencial, mas por telefone, assim como várias reuniões que não levavam a nada — e, com nossa sede de controlo e poder, não estávamos a ver isso. Tivemos exatamente o efeito oposto!

À medida que flexibilizamos a necessidade de reuniões, abrindo mão do controlo, conseguimos obter melhores resultados.

Só que, para abrir mão do controlo, é preciso ter tolerância ao risco, incluindo saber navegar na ambiguidade, errar muito e não desanimar. Para isso, ser resiliente é indispensável. Apenas abrindo mão do controlo constrói uma relação de confiança, pois a relação entre controlo e confiança é inversamente proporcional.

O que é confiança, afinal?

Nas ciências sociais, a definição de confiança mais usada sugere “um estado psicológico que compreende a intenção de aceitar a vulnerabilidade, com base em expectativas positivas das intenções ou comportamento de outro”.

Agora pergunto-lhe: entendeu alguma coisa da definição acima? Provavelmente não. Eu certamente, não, admito, da primeira vez que a li. Só ressuscitando o Freud conseguiríamos entender essa definição de “psicanalês”.

Mas aí fui mais a fundo, tentando mergulhar a fundo nessa frase. E podemos aprender 2 coisas a partir dessa definição: a primeira é que a confiança nasce da vulnerabilidade. Mas o que é vulnerabilidade na vida e nos negócios?

Vulnerabilidade

Segundo Brené Brown, maior especialista do mundo sobre vulnerabilidade, “não se trata de ganhar ou perder; é sobre mostrar e ser visto. Se expor”.

Vulnerabilidade é não ter medo do julgamento dos outros. Lembra-se do Patrick Doyle, da Domino ‘s? Ele não tinha medo de falhar, ser ridicularizado ou ser o primeiro a levantar a mão e dizer: “Houston, temos um problema — a nossa pizza está muito má!”.

Vulnerabilidade é um ingrediente fundamental para construir confiança, pois permite ao líder descer do pedestal e se aproximar das pessoas, mesmo num momento onde todos estamos fisicamente distantes.

Um grande exemplo de como vulnerabilidade e proximidade geram confiança e, inclusive, impactam o negócio é, ao meu ver, demonstrado pela dupla Luiza Helena Trajano e o seu filho Fred, do Magazine Luiza. De forma empática e humana, a dupla posicionou a empresa como parceira dos micro e pequenos empresários ao lançar o Parceiro Magalu e outras iniciativas de marketplace para empresas que, até então, não tinham “loja online”.

A própria Luiza Trajano tem uma compreensão muito boa da população brasileira, e uma proximidade muito grande com as suas equipas e clientes. Não à toa, um dos pilares da empresa é “gente que gosta de gente”.

Foram rápidos em se conectar com o pequeno empreendedor, captaram esse público e ofereceram taxas menores para hospedagem dos produtos no marketplace da Magalu. O resultado? O Magazine Luiza alcançou quase 177 mil milhões de reais de valor de mercado, e segundo o BTG pactual, essa aceleração, correspondente ao planeado para 50 semanas, foi conquistada apenas nas 5 semanas após o início da pandemia.

Nesse cenário, tenho algumas dicas práticas de como demonstrar vulnerabilidade:

  • Admitir e se apropriar dos seus erros;
  • Partilhar os seus medos e inseguranças;
  • Não se levar muito a sério;
  • Partilhar a própria jornada de “evolução”;
  • Pedir e receber ajuda dos outros;
  • Controlar o próprio ego;
  • Reconhecer a vulnerabilidade como força, não fraqueza.

O segundo grande elemento para vulnerabilidade é a necessidade das expectativas positivas como forma de não temer a nossa vulnerabilidade frente às ações da outra parte. Quando há reciprocidade, o controlo se torna desnecessário.

Reciprocidade

Seguindo o raciocínio, vamos à segunda parte daquela explicação que ficou lá atrás.

Para a confiança se fazer presente, as partes que interagem têm que ter expectativas positivas uma sobre a outra — basicamente, esperar que o outro aja de maneira honesta, confiável, desinteressada e que não prejudique os interesses dos demais.

Pense na seguinte situação: vamos supor que, numa sexta, sai para um happy hour depois do trabalho, exagera um pouco com a cerveja e comete o erro de pegar o carro. Em seguida, é parado na Lei Seca e tem o seu veículo retido. A essa altura do campeonato, são duas da manhã, liga para aquele amigo de confiança, com quem sempre pode contar. Ele estava a descansar em casa e, mesmo assim, troca de roupa, entra num Uber até si e te salva dessa.

Se perguntar para porque sacrificou o seu descanso na madrugada de sábado para tirar do aperto um amigo, aposto mil euros que a resposta será: “porque ele teria feito o mesmo por mim”.

Reciprocidade desinteressada leva a comportamentos proativos e de grande impacto! E essa reciprocidade nasce normalmente do exemplo e da demonstração de vulnerabilidade do líder.

Não é por acaso que o livro sobre Liderança, do Simon Sinek, chama-se Leaders Eat Last, ou seja, Líderes Comem por Último, referindo-se à práticas do exército americano onde os militares de mais alto escalão costumam esperar que todas as tropas tenham se alimentado bem para, só depois, fazer a sua própria refeição.

Isso faz o líder descer do pedestal e mostrar que as pessoas vêm primeiro que ele próprio. Ao ganhar créditos em um esquema de reciprocidade, consegue criar um ambiente de cooperação e sucesso e, em particular, livre de “perigos”.

Sim, perigos.

Porque, afinal, o mundo corporativo é cheio de perigos internos, que tiram o sono das nossas equipas. Politicagem, problemas pessoais de fora, cortes de orçamento, rotinas, punições por erros, resultado de curto prazo… todos esses são perigos. O que não significa, necessariamente, que sejam coisas ruins, mas que se o líder não criar uma sensação de segurança, pode desviar o foco das equipas em combater os reais perigos externos do mercado, dos concorrentes e dos incumbentes.

É por isso que, através da empatia, vulnerabilidade e por fim, da reciprocidade, precisa criar um Círculo de Segurança, que, segundo Simon Sinek, é um lugar virtual, no qual podemos nos sentir seguros e protegidos, oferecendo o nosso máximo. Nas suas palestras, Simon Sinek diz que “é muito difícil enfrentarmos os perigos por dentro das nossas empresas se os líderes não nos permitem um espaço para nos sentirmos seguros dentro de nós mesmos”.

Sendo assim, somos forçados a exercer as próprias forças para nos proteger do outro e acabar, dessa forma, expondo-nos.

Além disso, temos diversas preocupações pessoais que nos atormentam diariamente, e preocupar-se com o que o seu chefe vai pensar do facto do leitor não estar a investir energia apenas nos negócios e produtos que desenvolve não ajuda em nada.

Olhe o exemplo de liderança empática do João Paulo Ferreira, CEO da Natura. Recentemente, o líder surpreendeu os funcionários da empresa ao mandar um convite de teleconferência na hora do almoço, mas não para marcar uma reunião, e sim para conscientizar a equipa sobre a importância de manter a disciplina nos horários de trabalho durante o home office e não exagerar. “Este não é um convite para uma teleconferência. É, na verdade, um convite para que reserve um tempo para cuidar de si mesmo”, dizia a mensagem. A ideia da reserva do horário era motivar os colaboradores a “dedicar esse intervalo para preparar a sua refeição com calma e aproveitá-la com quem estiver ao seu lado na quarentena”. Isso faz com que as pessoas se sintam num círculo de segurança.

Como fazer a confiança viver?

Agora, para que realmente a confiança viva na companhia, precisamos que esta também faça parte da cultura da empresa. O que isso quer dizer? Vamos começar pelo que a cultura não é.

Cultura de empresa não são valores, missão ou até propósito. Cultura não é nada escrito no papel. Ben Horowitz, autor do livro “What You do is Who You Are”, define perfeitamente o que é cultura de empresa: o que as suas equipas fazem enquanto não está a ver.

Ou seja, cultura é a prática. De nada adianta ter frases lindas nas paredes do escritório se não vivemos essas frases na prática.

Cultura é a vulnerabilidade e reciprocidade que devemos viver todos os dias, para implementarmos um círculo de confiança em nossas organizações e prepará-las para o mundo do pós-crise.

Artigo de Andrea Iorio, Autor – MIT Technology Review Brasil

Nossos tópicos