Comumente associado ao ambiente das redes sociais, o cancelamento ocorre quando um internauta manifesta uma opinião que não é tolerada por um determinado grupo de pessoas. Quando isso acontece, o alvo de uma campanha de cancelamento é massacrado por críticas, agressões, tem a vida particular exposta, num movimento que visa esvaziar a relevância daquela pessoa.
Eleito o “termo de 2019” pelo dicionário australiano Macquarie, facto comprovado pelo pico de incidências no Google Trends, o cancelamento foi definido como “uma atitude tão persuasiva que tornou-se, para o bem ou para o mal, uma força poderosa”. Outro dicionário, o americano Merriam-Webster, relacionou o comportamento com a ascensão do #MeToo e outros movimentos que exigem uma prestação de contas por atitudes de figuras públicas. A relação de disputa entre partes de forças desiguais é determinante.
Atrás de uma definição mais precisa do significado da cultura do cancelamento, uma vez que o termo recebe diferentes interpretações, o jornalista Glenn Greenwald perguntou pelo Twitter e recebeu do psicólogo evolutivo Geoffrey Miller a seguinte resposta:
“É um sistema social de controlo ideológico em que uma multidão online se reúne por uma indignação para apelar às autoridades (seja o governo, empregadores ou os grandes media) para destruir a vida de alguém porque disseram algo supostamente ofensivo.”
Não existe unanimidade em torno da prática. Nomes de peso, como o ex-presidente dos EUA Barack Obama, o comediante Dave Chappelle ou a ativista Loreta Ross já criticaram publicamente o cancelamento, questionando a validade da estratégia.
Isso porque, na maior parte das vezes, os cancelados nem sequer permanecem nessa situação por muito tempo, principalmente quando são pessoas com uma grande audiência. É muito mais fácil atacar celebridades, mas é também muito mais difícil cancelar, de facto, vozes com um grande alcance nos media.
Recentemente, a editora de opinião do The New York Times, Bari Weiss, pediu demissão do cargo. Na carta de despedida, disse que os utilizadores do Twitter se tornaram nos editores do jornal e que o medo de os desagradar limitou o ângulo de abordagens dos assuntos.
A demissão de Weiss foi seguida por uma carta assinada coletivamente e publicada na revista Harper’s Bazaar criticando a cultura do cancelamento. Embora não tenha feito referência direta ao termo, o texto descreve um cenário que estaria a sufocar as vozes de muitos. O manifesto intitulado “Uma carta sobre justiça e debates abertos”, foi assinado por nomes tão diversos como o filósofo e linguista Noam Chomsky, a feminista Gloria Steinem, o psicólogo Steven Pinker e a autora da saga Harry Potter, J.K Rowling.
Os críticos do cancelamento apontam que na cultura tóxica das redes sociais, um erro genuíno, que antes poderia servir de aprendizagem, agora tornou-se fatal. Não importa o tamanho, se foi intencional ou cometido por desconhecimento. Paralelamente, além de gerar medo, um cancelamento gera poucas mudanças práticas e poderia anular oportunidades de expansão individual e coletiva.
Analisando o cenário atual para avaliar se a cultura do cancelamento é justa ou se está reprimindo as discussões, o The New York Times enumerou dez pontos a serem considerados sobre o tema. Segundo o jornal, ser atacado pelas suas opiniões, ou mesmo insultado, não é ser cancelado. O cancelamento materializa-se quando o alvo é a reputação, o emprego ou ambos.
É por isso que Greenwald define como “chilique” o protesto dos signatários da carta da Harper’s Bazaar, incomodados apenas por estarem a ser confrontados. O compositor e ativista Billy Braggs, num artigo publicado no The Guardian, discorreu sobre como essa é uma troca de valores calculada. A nova geração prioriza responsabilidade e prestação de contas acima de liberdade de expressão.
Porém, muitas vezes os alvos dessas campanhas não são poderosos. Em diversos casos, pessoas comuns têm as suas reputações destruídas por terem transgredido minimamente os novos limites sobre o que é ou não aceitável no discurso atual. Isso quando não são canceladas por engano e não conseguem se defender ou reverter os prejuízos.
A cultura do cancelamento tem um impacto muito maior em pessoas que normalmente não têm destaque (pelo menos até serem canceladas). Por isso, acaba por se moldar e determinar comportamentos baseados exatamente no receio de serem, de facto, canceladas.
Os adeptos da cultura do cancelamento apontam que essa talvez seja a única ferramenta disponível para comunidades minorizadas ouvirem as suas vozes em consideração, num equilíbrio de forças possível apenas por meio da rede.
Pessoas que historicamente tiveram a exclusividade do megafone na mão, agora passaram a experimentar respostas aos seus posicionamentos com uma força que antes não existia. O rapper Emicida abordou a questão numa recente entrevista ao Roda Viva, da TV Cultura, quando disse que os cancelados muitas vezes apenas estão a ser questionados ou responsabilizados pelo que disseram.
Participar diretamente na decisão sobre quem deve ter alcance é parte dessa negociação. É como se os menos favorecidos falassem para esses poderosos: “você pode ter mais status, mais fama ou mais dinheiro do que eu, mas não vai mais ter a minha audiência, porque isso eu controlo”. Num mundo em que audiência cada vez mais é poder, isso é uma arma poderosa.
Essa procura por um nivelamento é justamente o motivo da cultura do cancelamento desagradar tanto os privilegiados, desacostumados a ouvir. Antigamente o alcance da fala era um privilégio e uma via de mão única. As críticas raramente chegavam aos autores ou, quando chegavam, não tinham grande repercussão. Agora as respostas têm alcance e isso pode incomodar quem não está habituado com essa disputa por equilíbrio.
O debate sobre a cultura do cancelamento desperta outras questões sobre a natureza e as consequências das trocas nas redes sociais. Por um lado, a liberdade de todos falarem o que quiserem gera pluralidade. Prova disso é que se pode encontrar qualquer tipo de opinião na internet. Por outro, esse confronto de forças, às vezes com consequências desproporcionais, pode levar a uma autocensura, limitando o discurso.
Voltando ao ponto sobre a dinâmica tóxica das redes sociais e de como esses comportamentos têm moldado os debates até mesmo fora delas, o que costumamos ver é que nunca a máxima “fale mal, mas fale de mim” foi tão verdade. Quanto mais controverso e polémico for o discurso, mais rapidamente se espalha.
A indignação é o combustível mais eficiente para a viralização, algo que muitas vezes acaba por se desdobrar na amplificação de vozes que não merecem ser realçadas. Nesse contexto é importante pesar e analisar o que de facto merece o holofote do cancelamento (discursos de ódio, preconceituosos, machistas), daquilo que é pura tentativa de pegar embalo no alcance de uma revolta. Cuidar para não deixar que pessoas mal-intencionadas moldem o debate utilizando a polémica como estratégia de repercussão.
Nesses casos, uma das formas de reagir é ignorar. Para algumas atitudes, o silêncio é a melhor resposta.
Artigo de Bruno Natal, da MIT Technology Review Brasil (adaptado).