Humanos e Tecnologia

O futuro das redes sociais pode ser o áudio

Uma nova onda de aplicações está a incorporar o imediatismo e a crueza do áudio ao centro da experiência dos seus utilizadores, mas há sérios problemas relativos à moderação nesses meios a serem enfrentados.

Todas as manhãs, enquanto Nandita Mohan vasculha os seus e-mails, os seus colegas de faculdade estão no seu ouvido — comentado sobre o dia, relembrando, refletindo sobre como é se formar no meio de uma pandemia.

Mohan não está ao telefone, nem está a ouvir um podcast de cunho pessoal; está a utilizar a Cappuccino, um aplicação que recolhe gravações de voz de um grupo fechado de amigos ou familiares e as entrega como áudio para download.

“Só de ouvir uns aos outros faz-me valorizar a nossa amizade, e ouvir as suas vozes é muito importante”, afirma a programadora de software da Bay Area, de 23 anos.

As mensagens de áudio estão disponíveis há anos; o recurso de voz no WhatsApp é muito utilizado na  Índia,  enquanto na China, a aplicação mais popular para isso é o WeChat. Durante o distanciamento social da pandemia, estas funções converteram-se numa  alternativa fácil para as pessoas manterem contacto , evitando a fadiga causada pelo Zoom. Mas agora uma nova onda de aplicações está a incorporar o imediatismo e a crueza do áudio no centro da experiência dos seus utilizadores: um resgate do uso da voz como um meio para as pessoas se reconectarem. De chamadas telefónicas a mensagens e o retorno ao áudio — a maneira como usamos os nossos telefones pode estar a regressar às origens.

Os recém-chegados

A rede especializada em áudio mais conhecida é o Clubhouse, acessível apenas por convite, a aplicação da moda estreou com críticas brilhantes  por repaginar as salas de chat dos primórdios da Internet, criando um ambiente online em que as pessoas conversam como se estivessem a participar num grupo de conversação.

Mas a promessa do Clubhouse foi prejudicada pela sua falta de moderação e tagarelice irrestrita de  investidores de capital de risco misóginos. O repórter do  New York Times, Taylor Lorenz, que já foi fã da aplicação, tornou-se alvo de assédio nas sessões do Clubhouse por denunciar o comportamento de um desses investidores.

“Não pretendo usar essa aplicação de novo”, Lorenz  contou  à revista Wired. “Não quero apoiar nenhuma rede que não leve a sério a segurança dos seus utilizadores”. Não foi um caso isolado, e, desde então,  graves demonstrações de racismo  emergiram, evidenciando que comportamentos que deterioram todas as outras plataformas sociais também acontecem no Clubhouse, a despeito de sua exclusiva e descolada  fachada.

Enquanto isso, a aplicação de chat para jogos Discord viralizou durante a pandemia. O serviço faz uso de um software de voz sobre IP para traduzir as conversas faladas em texto (uma ideia que veio de jogadores de jogos que acreditam ser impossível digitar enquanto jogavam).  Em junho, com o intuito de explorar a procura por conexão das pessoas durante a pandemia, o Discord anunciou um novo slogan —“O seu lugar para conversar” — e promoveu os seus esforços para fazer com que os seus serviços tivessem um apelo a um público maior que o de jogadores. Tais esforços de marketing parecem ter funcionado: O Discord estimou  6,7 milhões de utilizadores  já em outubro — , sendo que, em fevereiro, pouco antes da pandemia, possuía em torno de 1,4 milhão.

Se, por um lado, as comunidades do Discord, (ou “servidores”) podem ser pequenas e inocentes — compostas por crianças que  organizam festas do pijama remotas e simultâneas —,  por outro lado, estas também são utilizadas por fundamentalistas de extrema direita, semelhantes aos que usaram  o serviço para organizar os comícios da supremacia branca em Charlottesville e a recente insurreição no Capitólio dos Estados Unidos.

Tanto no Discord quanto no Clubhouse, a cultura do favoritismo intragrupo — jogadores nerds no caso do Discord e investidores de capital de risco confiantes demais no contexto do Clubhouse — levou a níveis de pensamento de grupo que são, na melhor das hipóteses, desagradáveis e, na pior delas, radicais. No entanto, o apelo de ambos persiste: Não é legal falar e, literalmente, ser ouvido? Afinal, essa é a promessa fundamental das redes sociais: a democratização da voz.

Fale e será ouvido

A intimidade despertada pela voz faz com que as redes sociais de áudio se tornem mais atraentes em tempos de pandemia, distanciamento social e isolamento. Jimi Tele, CEO da Chekmate, um aplicação de namoro “sem texto” que conecta utilizadores apenas por voz e vídeo, afirma que a intimidade da voz o inspirou a lançar a aplicação que seria “à prova de catfish”, referindo-se a pessoas que enganam outros online com perfis falsos.

“Queríamos romper com o anonimato e a gamificação que as mensagens de texto permitem e, em vez disso, criar uma comunidade enraizada na autenticidade, onde os utilizadores são encorajados a serem eles mesmos sem julgamento”, declara. Os utilizadores da aplicação começam com memorandos de voz que duram em média cinco segundos e vão ficando cada vez mais longos. E, embora o Chekmate tenha uma opção de vídeo, Tele diz que grande parte dos milhares de utilizadores da aplicação preferem usar as suas vozes. “O uso da voz é visto como menos intimidante [do que as mensagens de vídeo]”, defende.

A combinação de imediatismo e autenticidade também levou Gilles Poupardin a criar a aplicação Cappuccino. Poupardin perguntou-se por que ainda não havia um produto que reunisse memorandos de voz num único arquivo para download. “Toda a gente mundo tem um grupo de troca de mensagens de textos com os amigos”, afirma. “Mas e se pudesse ouvi-los ao invés de digitar? Ter essa alternativa é algo muito significativo”.

Mohan concorda. Refere que o seu grupo de amigos migrou de um grupo no Facebook para o Cappuccino e, depois, desse para o Zoom, assim que a pandemia começou. Essa mudança inevitavelmente limitou os assuntos abordados pelo grupo: era preciso focar nos grandes acontecimentos da vida de cada um. “Não sobrava tempo para entrar em detalhes”, lamenta. Os “beans” diários do Cappuccino — grãos em português — são gravações agrupadas que permitem que o círculo de amigos de Mohan se mantenha atualizado de uma maneira muito íntima. “Uma amiga acabou de mudar para outra cidade, e esta mandou áudios sobre como tomava café na cozinha nova”, declara Mohan. “Isso é algo que eu nunca saberia num encontro no Zoom, um detalhe tão pequeno”.

Até mesmo as empresas de redes sociais mais renomadas estão a embarcar nessa tendência. Em meados de 2020, o Twitter  lançou tweets de voz, 140 segundos de áudio, apelidados de Spaces.

“Queríamos saber se o áudio seria capaz de potencializar a conexão na conversa pública”, disse Rémy Bourgoin, engenheiro de software sénior da equipe Spaces e tweets de voz do Twitter.

Bourgoin explica que a visão é a de que o Spaces seja “tão íntimo e confortável quanto um jantar agradável”. Não precisa conhecer todos os convidados para se divertir, mas deve se sentir confortável sentado à mesa”.

A sua reação ao ler que o Twitter quer criar um ambiente seja “confortável” e “íntimo” pode ter sido um franzir de testa de descrença. Afinal de contas, o Twitter não tem um bom histórico em criar um contexto acolhedor e que protege os seus utilizadores dos mais diversos abusos.

Bourgoin afirma que o lançamento do Spaces para além do beta e de um pequeno grupo de utilizador tem sido propositadamente lento e que irá, além disso, incluir um recurso raro de acessibilidade em redes de áudio: a inclusão de legendas. “No momento, qualquer incidente no Spaces pode ser denunciado por qualquer pessoa que esteja no Space”, diz Bourgoin. “As denúncias serão analisadas pela nossa equipa, que avaliará as violações das Regras do Twitter”.

A parte feia

Ah, a moderação. A moderação de conteúdo em áudio é muito mais difícil do que a de texto. Texto pesquisável e  moderação automatizada  têm sido empregados com relativo sucesso, mas a presença de moderadores humanos têm demonstrado ser a forma mais efetiva de bloquear as pessoas que não cumprem as regras da comunidade e  que colocam as vidas dos demais em risco. Em plataformas onde as pessoas podem entrar a qualquer momento e bater um papo, a democratização que torna o áudio tão atraente é também um pesadelo para a moderação. “Sem sombra de dúvidas, esse é um grande desafio para qualquer plataforma cujo conteúdo é gerado pelo utilizador”, declara Austin Petersmith, que lançou a Capiche.fm  em modo beta no ano passado, um site criado a partir de uma comunidade de software que se assemelha a um programa de rádio por telefone: os apresentadores ligam uns para os outros para iniciar o programa e, em seguida, convidam os ouvintes a falar enquanto estão “no ar”.

Como os utilizadores do Clubhouse já aprenderam, “a coisa pode ficar feia” de uma hora para outra nas plataformas de áudio como em qualquer outro lugar na Internet. Pessoas que já sofrem abuso na forma de texto — as marginalizadas, não-binárias, não-brancas, mais jovens, mulheres — provavelmente não vão querer estar numa plataforma onde há a possibilidade de serem abusadas novamente, só que agora na forma de áudios e de um jeito bem mais difícil de controlar.

Também há razão para acreditar que essas plataformas, por serem mais novas e menos regulamentadas, acabem por atrair as centenas de radicais conspiratórios de extrema-direita e seguidores no QAnon, que agora estabelecem as suas próprias redes de podcast.

Mesmo assim, essas redes sociais de áudio parecem oferecer algo que as redes sociais tradicionais não são capazes de fornecer. Uma das principais vantagens do formato é que este oferece aos utilizadores a conexão imediata de uma chamada de voz ou vídeo, mas de uma forma particularizada. Chamadas telefónicas — e chamadas Zoom, nesse caso — requer algum planeamento. Mas as redes sociais de áudio configuram algo que pode ser criado e assimilado de acordo com a sua conveniência: de maneira avessa aos alertas de notícias, notificações e doom scrolling (obsessivamente verificar atualizações aumentando a probabilidade de ser exposto a notícias “más”). Como Mohan afirma sobre a app Cappuccino, ao escutar os seus amigos todas as manhãs: “Isso dá-me força a ouvir com mais atenção o que cada pessoa está a falar. Eu até anoto as minhas respostas e comentários”.

Para Mohan, ouvir as gravações do seu círculo de cinco amigos tornou-se um ritual afetivo, algo que o coloca em dia com o que está a acontecer com eles no seu próprio ritmo. “Todos os dias, no meio da jornada de trabalho, gravo o meu Cappuccino”, declara, referindo-se à gravação que faz na aplicação. “Sinto que é algo muito pessoal. Estou a ouvir todas as suas vozes e sinto-me por dentro do que eles [os amigos dela] estão a fazer no dia a dia”.

Artigo de Tanya Basu, Team – MIT Technology Review EUA (adaptado)

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