No mundo moderno, algumas indústrias têm pautado todas as transformações sociais que vivemos. Destacam-se como as mais importantes: a bélica e a dos videojogos.
No caso da indústria dos videojogos, o tema vem sendo destacado de forma recorrente, merecendo ênfase em uma série de artigos da BBC, de 2017, intitulada de 50 coisas que construíram a economia moderna com o artigo “The surprising ways video games have shaped the economy” de Tim Harford.
O foco deste artigo, no entanto, está na influência dos videojogos nas relações de trabalho. Num futuro bem próximo, é possível que decisões de promoções, demissões e até aumentos de salários sejam decididas única e exclusivamente por robôs programados para avaliar a nossa performance atual e potencial performance futura.
O universo dos videojogos
Muita gente ainda acredita que jogos são apenas passatempos e, jamais pararam para estudar o tamanho desta indústria ou o impacto que traz em termos de tecnologia e comportamento para o mundo. No passado, procurou-se medir o impacto de um dos jogos mais populares de todos os tempos: World Of WarCraft. Eis o que encontraram:
- 100 milhões de utilizadores registados e 500 milhões de personagens (considerando o número de personagens, mais do que o dobro da população brasileira).
- 3.900 minutos de músicas on-line. Seria necessária uma coletânea de aproximadamente 45 CD ‘s para que pudesse ouvir todo este conteúdo.
- 6 milhões de palavras fazem parte da rica história e diálogos do jogo, o suficiente para se publicar mais de 12 volumes de “O Senhor dos Anéis”.
- 244 países e territórios possuem jogadores ativos. Inclusive a Antártida.
E, talvez, a mais impressionante delas: somadas, as horas de jogo de todos os jogadores, acumularíam quase 6 milhões de anos jogados! Se voltássemos na história, estaríamos provavelmente a ver o homem ficar de pé pela primeira vez.
A controversa, contudo, relevante teoria de Malcolm Gladwell publicada no seu livro e best seller “Outliers: The Story of Success” diz que qualquer pessoa que pratica uma atividade por 10.000 horas torna-se proficiente naquele campo. Levando-se então em consideração as habilidades que um ser humano desenvolve ao jogar de forma tão intensiva. Pode-se concluir que os 3 benefícios mais tangíveis dessa imersão são:
Senso de propósito: um jogador por menos habilidade ou experiência que tenha num determinado jogo, sem questionar as suas habilidades parte imediatamente para concluir os objetivos.
Feedback constante: o jogador habitua-se a receber os feedbacks constantes do próprio jogo. Novos níveis, novos equipamentos, experiência, pontos de vida. Há um estímulo constante de valorização do que se fez de forma correta traduzido em evolução dentro do jogo.
Desenvolvimento de um novo Tecido Social: os jogos on-line popularizaram a construção de guilds, clãs e outros nomes semelhantes. Não raro, existem clubes com 50 ou mais jogadores unidos em torno de objetivos comuns. O poder dos videojogos no desenvolvimento do Tecido Social, foi inclusive título de um artigo da Brigham Young University em 2019. A principal descoberta é que vídeojogos colaborativos em equipas recém formadas podem aumentar a produtividade da equipa em até 20%.
O trabalho que existe num jogo, além de simplesmente jogar
Para entender este novo tecido social, as suas regras e a forma que isso pode se traduzir no mercado de trabalho no futuro, é preciso mergulhar dentro de um destes universos.
Star Wars Galaxy of Heroes (SWGOH) é um jogo de plataforma mobile, para iOS e Android, cujo universo gira em torno dos filmes do mesmo nome da franquia da Disney. Com jogadores fiéis ao redor do mundo, desde o seu lançamento, em 2015, ano a ano tem gerado uma faturação próxima ao patamar de US$ 200 milhões, embora seja um jogo pertencente à categoria “freemium”, um modelo de negócio em que um produto ou serviço proprietário (tipicamente uma oferta digital como software, media, jogos ou serviços web) é oferecido gratuitamente, mas alguma quantia em dinheiro é cobrada de utilizadores premium para obterem recursos adicionais, funcionalidades ou bens virtuais.
Galaxy Of Heroes está organizado em “guildas” de 50 jogadores. E conta com os seguintes modos de jogo de forma recorrente: Player vs Computer, Player vs Player, Guilda vs Computer e Guilda vs Guilda.
O trabalho de organização de um líder ou fundador de guilda, é, portanto, hercúleo. E, quanto maior o poder de uma guilda, mais difícil fica esse trabalho. Um líder de guilda precisa determinar de alguma forma a melhor alocação e o uso dos pontos fortes de cada um dos membros da sua equipa, além, é claro, de precisar lidar com ego, pressões e, sem dúvida nenhuma, debates acalorados nas derrotas.
Novas relações de trabalho pautada em videojogos
A maior parte dos jogadores pouco a pouco migra a comunicação ligada aos videojogos para um app ou canal de comunicação exclusivo para evitar a mistura de informações com sua vida familiar ou profissional e se beneficiar de ferramentas desenvolvidas para o mundo dos vídeojogos.
Abre-se aí um novo universo. O universo do “Discord”, uma aplicação de mensageria que integra mensagens de texto e voz, é gratuito, projetado para comunidades de jogos. Como plataforma de desenvolvimento, Discord é um ambiente onde desenvolvimento e inovação florescem.
Guildas de SWGOH como a União Kyber estão dentro do Discord e aparentam um nível de organização e profissionalismo com o jogo semelhante ao de uma empresa. Contam com um site com um senso estético incrível e atualizações feitas na sua grande maioria, de forma automática.
A automação, tal como no mundo corporativo, aliás, é chave para o funcionamento mais eficiente de uma guilda. Contudo, diferente do mundo corporativo que ainda engatinha na adoção de RPA, o mundo dos vídeojogos possui um robô para cada processo com o qual um líder precisaria se preocupar.
No universo corporativo, de acordo com estudo da Deloitte de 2020, 53% das organizações começaram a sua jornada de RPA e, embora a Deloitte afirme que o ritmo possa indicar para um uso massivo em 5 anos, é importante destacar que outro estudo, de 2018, destacava os mesmos 53%.
Já no universo dos videojogos, a maior parte do código dos robôs é aberto e partilhado. Então o líder de uma guilda e os seus pares estão sempre a desenvolver-se e a colaborar com jogadores no mundo inteiro para usar e melhorar os seus processos e automações. Isso faz com que, com 12 horas de antecedência, cada jogador receba na sua caixa do Discord as melhores indicações possíveis.
O que mais me surpreendeu, contudo, é que em guildas tão profissionalizadas como essa, a decisão de subir ou descer, ser promovido ou rebaixado é de um robô. E, ser promovido ou rebaixado não é surpresa nenhuma. A todo momento um jogador pode acompanhar as suas próprias estatísticas, enviando uma mensagem para o robô que lhe diz claramente o que deve fazer para continuar a evoluir o seu portfólio. As decisões não poderiam ser mais justas.
Em guildas que não contam com o uso de robôs, as decisões acabam tendo muita relação com o nível de proximidade do jogador com o líder ou seus pares. Existem os protegidos, as decisões unilaterais, a avaliação por um momento imediato e não pela trajetória ou potencial. Algo que remete fortemente a grandes queixas e reclamações que vemos no mundo corporativo.
Nota-se que a nova geração, que já nasce inserida neste contexto, prefere muito mais a impessoalidade nestas decisões, do que aquelas que vêm carregadas de “emoções”, em geral, negativas para os dois lados, sem levar em conta a ética destas relações, como bem destacou Maartje M. A. de Graaf em seu artigo “An Ethical Evaluation of Human–Robot Relationships”, para o International Journal of Social Robotics em 2016.
A transformação
Essa geração acostumada ao feedback constante que os jogos proporcionam e, que agora, automatiza este tipo de decisão, em questão de uma década, chegará aos cargos de liderança no mercado corporativo e, certamente, irá passar por frustrações ligadas à própria carreira profissional.
A “não-promoção”, a avaliação de performance ou potencial que considerou injusta, a demissão “surpresa” e o sentimento da existência de alguns “protegidos”, entre outras avaliações negativas, deve acabar por motivar essa geração a transformar essas relações de trabalho com as ferramentas que conhece e que reconhece como sendo mais eficientes e justas do que as tradicionais Avaliação 360 graus (também chamadas de “feedback 360”, são um método de avaliação de pessoas que se baseia na ampla participação de todos os integrantes da equipe), 9-Boxes (9 Box ou Matriz Nine Box é uma metodologia de avaliação de desempenho dos colaboradores que leva em conta a sua produtividade e o seu potencial de desenvolvimento dentro da empresa) e Balanços Humanos, entre outras.
Está pronto para trabalhar em conjunto com um robô no desenvolvimento de sua carreira?
Artigo de Charles Schweitzer, Autor – MIT Technology Review Brasil