Sempre que falamos sobre startups, pensamos em nomes como Google, Facebook, Amazon, Airbnb, Uber, etc. Por dois motivos, isso faz bastante sentido. O primeiro é por que foram essas empresas do mundo digital que produziram as inovações que mudaram completamente as nossas vidas nos últimos 20 anos. O segundo é porque a maior parte das pessoas considera a palavra “tecnologia” como sinónimo de Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) como as que estão por trás da Internet, softwares, Inteligência Artificial, etc. Mas o mundo das tecnologias vai muito além disso. Aliás, o conceito de tecnologia existe no mundo “duro” muito antes do mundo digital existir. O “Technology” desta revista, inclusive, existe muito antes da indústria de software ou da Internet existir.
Embora esteja a trabalhar com o tema há alguns anos e saiba do potencial das startups que vão além do mundo digital em virtude da minha atuação no Comité de Cleantech da ABStartups, na Finep, no LabrInTOS da COPPE/UFRJ e até mesmo na liderança do programa MIT REAP no Brasil, no último mês tivemos uma notícia que deve ter surpreendido a maior parte do público: o homem mais rico do mundo em 2021 é alguém que construiu a maior parte da sua fortuna fora do mundo digital. Elon Musk é executivo/sócio/fundador/investidor de uma série de hardtechs que estão a reinventar os setores em que atuam.
Nos últimos 10 anos Jeff Bezos (Amazon), Bill Gates (Microsoft) e Carlos Slim (América Movil, Telmex) foram trocando os seus lugares no topo da lista dos homens mais ricos do mundo. Enquanto isso, Elon Musk corria por fora e construía o seu “império de hardtech” que o levou a se tornar o homem mais rico do mundo. Sem dúvida um grande feito, mas que, para os mais atentos e/ou visionários, é apenas a ponta do iceberg. Mas o que está por baixo da parte exposta deste iceberg?
Afinal, o que é uma hardtech?
De maneira geral, uma hardtech (às vezes chamadas de tough techs) é uma startup que lida com o desafio das tecnologias complexas e ligadas ao mundo físico. Essas startups também podem estar ligadas ou integradas ao mundo digital, mas essas tecnologias não necessariamente são os seus diferenciais. São, por exemplo, startups que lidam com biotecnologia, novos materiais, dispositivos eletrónicos e mecânicos.
Como falamos anteriormente, Elon Musk é um exemplo notório de empreendedor sério de hardtechs. Embora a sua carreira tenha começado no mundo digital com empresas como Zip2 e PayPal, do início dos anos 2000 para cá os seus maiores investimentos e projetos são na área das hardtechs. Inclui-se nesse rol a SpaceX (empresa de exploração espacial de lançamento de satélites, mas que possui como principal objetivo a colonização de Marte), a Tesla (veículos elétricos), Solar City (telhados para geração de energia solar), Gigafactory (produção de baterias e painéis solares de alta performance), Hyperloop (sistema de transporte de alta velocidade que gera energia), Neuralink (que procura integrar humanos e máquinas através de implantes cerebrais), entre empresas.
Alguns especialistas acreditam que, nas próximas décadas, alguns dos avanços mais significativos em termos de tecnologias serão promovidos exatamente por estes tipos de startups. As grandes mudanças das últimas três décadas foram em grande parte puxadas pela transformação digital de empresas, governos e outras instituições. As próximas deverão ir além do mundo dos softwares a abarcar os hardwares.
São mudanças nos sistemas de transporte como os veículos elétricos autónomos e voadores como os da chinesa E-Hang e da joint venture entre Uber e Embraer. São comboios de altíssima velocidade capazes de gerar energia como o Hyperloop Transportation em testes em Abu Dhabi. São de mudanças tecnológicas com possibilidades de geração de energia barata ainda em fase de pesquisa como a fusão nuclear, o silício negro e os biocombustíveis avançados. São de revoluções na área médica como as terapias e edição genética da Editas Medicine, investida pelo GV, o fundo de Corporate Venture do Google, e das iniciativas de integração de homens e máquinas da Neuralink, na qual Elon Musk é fundador e CEO, e outros eletrodomésticos conectados que já começam a fazer parte do nosso dia a dia dentro do conceito de Internet das Coisas (IoT, do inglês Internet of Things), que mudará completamente a nossa forma de interagir com objetos.
Essas e outras hardtechs prometem mudar a forma como viveremos nos próximos anos da mesma forma que Internet e as Tecnologias da Informação mudaram os últimos.
O que difere uma hardtech de uma startup digital?
O número e a importância das startups digitais no mundo de hoje são tão grandes que o conhecimento de empreender nessa área já virou uma metodologia/tecnologia em si. Muitos conhecem diversas ferramentas utilizadas para se iniciar e desenvolver uma startup do zero ao IPO. Business Model Canvas, MVP, Lean Startup, CAC, Proposta de Valor, LTV, Pivotar, etc. São inúmeros termos, conceitos e práticas que somadas pavimentam o caminho para quem quer empreender. Um aspirante a empreendedor do mundo digital certamente encontrará grandes desafios até ser bem-sucedido, mas a quantidade e a variedade de conhecimento disponível certamente não será um dos maiores.
No mundo das hardtechs, ao contrário, ainda não há uma estrada pavimentada a mostrar uma direção predominante a ser seguida. Embora Elon Musk tenha se tornado o homem mais rico do mundo por este caminho, ainda está praticamente sozinho como representante das grandes fortunas construídas via hardtechs. A sua fórmula é muito associada à sua própria característica pessoal, e não a um método específico. Este caminho metodológico ainda precisa ser entendido e construído, assim como aconteceu com as startups do mundo digital a partir do início dos anos 2000. A fórmula dos empreendedores digitais não funciona da mesma forma para as hardtechs e veremos algumas das razões para isso:
Alto volume de investimentos iniciais: É comum uma startup digital começar com as poucas economias dos sócios fundadores, avançar captação com investidores-anjo com valores a partir de $100 mil, e fazer rondas adicionais à procura de investimentos a cada dois ou três anos para sustentar o seu crescimento até ser viável economicamente. Para as hardtechs, muitas vezes, esta opção é inviável, exigindo saltos muito grandes de investimentos antes mesmo delas chegarem ao mercado. Um exemplo interessante é a startup KD que desenvolveu o produto Vikaflex, um material inovador para a construção civil feito a partir de resíduos de xisto que é leve, impermeável, incombustível e resistente, sendo capaz de consolidar as características de solidez da alvenaria com a rapidez e praticidade dos sistemas drywall. A tecnologia já foi validada tecnicamente, mas ainda não está disponível no mercado. O valor estimado para o início da produção em escala comercial é em torno de $30 milhões, um valor consideravelmente maior que o necessário para os MVPs digitais.
Time-to-market: A implementação da maior parte das hardtechs também é mais lenta e muitas vezes envolve questões que não fazem parte do rol de problemas das startups digitais como a construção de fábricas, a logística de entrega de produtos, a gestão de múltiplos fornecedores de matéria-prima, a proteção via propriedade intelectual, etc. Um bom exemplo da diferença de timing entre as startups digitais e as hardtechs é a Gigafactory, unidade de baterias avançadas da Tesla, no Nevada. A sua construção começou em 2014 e só ficou completamente pronta em 2018, exigindo centenas de milhões de dólares de investimentos antes de ter qualquer produto no mercado. É um processo muito diferente dos MVPs e “fail fast, learn faster” utilizados recorrentemente nos empreendimentos do mundo digital. Outro caso interessante, ainda no início dessa trajetória, é a startup Tupan, criada por um conjunto de estudantes de engenharia do Rio de Janeiro e que ganhou recentemente o prémio “Invent for the Planet”. O seu dispositivo para auxiliar a locomoção de deficientes visuais já foi testado e premiado, mas a produção e distribuição em larga escala ainda é um grande desafio a ser superado.
Desafios da difusão e escala: Além de levar mais tempo para chegar no mercado, difundir e escalar as hardtechs também é um desafio de outras proporções. Nos primórdios do mundo digital esse problema, de certa forma, também existia. Ao montar um negócio digital, os primeiros empreendedores da internet tiveram que montar servidores e infraestruturas de rede próprias, ferramentas de gestão individuais, etc. Hoje, serviços de infraestrutura “plug-and-play” como AWS e Azure, e ferramentas de gestão como Pipedrive, Trello, Mailchimp, Resultados Digitais, entre outros, facilitam muito o empreendedor digital no início da jornada. No universo das hardtechs podemos ver a diferença citando como exemplo a startup Pólen, que possui uma solução de destinação de resíduos que integra o digital com o mundo físico. Embora apresente uma plataforma digital com tecnologia blockchain para transação de resíduos de diversas naturezas, a logística de toneladas desses rejeitos do seu ponto de geração até o local para correta destinação é um desafio de gestão e de escala que vai muito além do usualmente visto nas startups 100% digitais. Outro caso interessante dessa diferença foi o desafio enfrentado pelos fundadores da 99 depois que venderam a companhia e montaram a plataforma de patinetes elétricas Yellow. No segundo negócio puderam viver na pele as agruras das startups que vão além do digital, já que tinham que gerenciar a produção e a manutenção das patinetes, logística de recarga, depreciação e descarte entre outras questões com as quais não tinham que lidar anteriormente, na plataforma 100% digital.
Empreendedorismo de base científica: Outra característica particular das hardtechs é a usual base técnica e científica. Se no mundo digital é comum ver a fusão da figura dos empreendedores com a da própria startup, no mundo das hardtechs isso é ainda mais contundente. Num estudo feito conjuntamente pela COPPE/UFRJ, FGV, ABStartups e EDP com recursos da ANEEL, foi mapeado que o perfil predominante dos empreendedores (especificamente do setor de cleantech) eram pessoas bastante experientes e com perfil muito técnico, que dificilmente seriam substituíveis com facilidade. Na área de biotecnologia, por exemplo, é comum fundos de investimento fazerem seguros e cláusulas contratuais de lock-in bastante rígidas em relação aos fundadores técnicos. Um exemplo interessante nesse sentido é a Biomass Trust, startup fundada por um brasileiro que está a fazer um pós-doutoramento em Harvard. Neste momento, a sua tecnologia exclusiva de retirada de cloro em pellets para exportação produzidos em zonas tropicais só consegue ser implementada com a participação ativa do empreendedor-pesquisador liderando o processo.
Ambiente regulado: Muitas soluções providas por startups hardtechs são endereçadas para setores bastante regulados como saúde, energia e transporte. Dificilmente um produto de uma hardtech de fármacos ou equipamentos médicos poderia ser lançado no Brasil sem atender às normas da Anvisa (ou órgão equivalente em outros países). Isso também vale para energia e as agências ANEEL e ANP. O transporte e as agências ANTT, ANAC ou ANTAQ. Esse ambiente regulado, que é fundamental para o funcionamento desses setores, muitas vezes pode ser um entrave para inovação, pois, em geral, a regulação é desenvolvida para mercados maduros. No setor de energia, as agências ANEEL e ANP, percebendo que os seus papéis institucionais vão além da fiscalização, estão a promover uma série de consultas públicas e alterações nos seus regulamentos de P&D obrigatório com o objetivo de serem também agentes importantes para o desenvolvimento económico via inovação. Esse movimento tem potenciado um ecossistema ampliado de atores e pode colocar o Brasil na vanguarda das revoluções que virão nesse setor nas próximas décadas.
O que nos reserva o futuro das hardtechs?
Como falamos anteriormente, os últimos 30 anos mudaram completamente o nosso modo de viver por meio de empresas do mundo digital. É difícil imaginar nossas vidas hoje sem o Google, Whatsapp, Facebook, YouTube, Uber, etc. E o mundo digital certamente ainda nos trará muitas inovações, principalmente oriundas de tecnologias de Data Analytics, Inteligência Artificial, Blockchain, entre outras.
Entretanto, existe um mar de novidades a serem incubadas (e já testadas) em muitas outras áreas não-digitais presentes em nossas vidas. Estamos a falar, por exemplo, de terapias genéticas, medicamentos, transplantes e integração de homens e máquinas que prometem reinventar a medicina e a saúde humana como conhecemos hoje, algumas a prometer elevar o ser humano à condição de “amortal”.
Nos transportes, novos modais como veículos aéreos autónomos e comboios de alta velocidade que geram energia enquanto se movem poderão reinventar o próprio conceito de cidades e centros urbanos como conhecemos hoje. A exploração espacial privada poderá abrir espaço para mineração no espaço ou mesmo bases humanas em outros planetas.
Em energia, além da transformação energética puxada pelos 3 “Ds” (descarbonização, descentralização e digitalização), temos grandes avanços possíveis em eficiência energética e geração de energia como o silício negro, o grafeno, a fusão nuclear controlada, energia do lixo entre outras que poderão disponibilizar energia abundante e barata para todo o planeta.
Essas tecnologias e startups hardtech já existem e já mostram o seu potencial, mas muitas ainda não encontraram o caminho adequado para escalar no mercado por diversos motivos. Algumas iniciativas como o The Engine do MIT, o GreenTown Labs e o Activate no mundo, assim como o LabrInTOS do PEP/COPPE/UFRJ e a Emerge da USP no Brasil, tentam encontrar soluções para acelerar esse processo de chegada ao mercado dessas hardtechs que poderão mudar o mundo nas próximas décadas.
O equivalente ao modelo de venture capital e de gestão lean que ajudaram a viabilizar o digital como conhecemos hoje, definitivamente não funcionará da mesma forma para as hardtechs. As tecnologias ligadas à indústria 4.0 ajudam nessa trajetória, mas ainda há um grande desafio para tornar as hardtechs tão abundantes e escaláveis quanto as startups digitais se tornaram. O homem mais rico do mundo, Elon Musk, encontrou o seu próprio caminho, mas o seu método ainda não é replicável. Para investidores e estudiosos do tema, dado o tamanho da oportunidade, ficam as perguntas: existe um padrão identificável/analisável para o sucesso das hardtechs? Se sim, quais são? Certamente a resposta correta para essas perguntas poderá gerar muitos bilionários nas próximas décadas.
Artigo de Hudson Mendonça, Autor – MIT Technology Review Brasil