Inovação

Muito além dos NFT: metaversos, Web3 e o futuro digital

A explosão do mercado das criptomoedas é apenas a ponta visível de uma completa transformação da internet através da criptografia e da descentralização.

O futuro será cada vez mais digitalizado. Isso não é uma premissa, é simplesmente a realidade. De muitas formas, esse futuro já chegou. Transformações tecnológicas são uma constante e a descentralização da internet por meio da criptografia é a próxima grande revolução digital. Há 15 anos, quando se falava que estaríamos hiperconectados, enviando vídeos de qualquer lugar do mundo e que o telemóvel substituiria os computadores pessoais, muita gente duvidava. O processo de descentralização da internet já está em curso.

Acreditar ou não no impacto dessas transformações está diretamente ligado a resposta a uma pergunta bem simples: o mundo vai se tornar mais ou menos digital nos próximos anos? A resposta parece óbvia.

Passamos grande parte do último ano online e diversas mudanças foram aceleradas. O cenário de pandemia apressou comportamentos esperados para se manifestar daqui cinco anos ou mais. De uma hora para outra o trabalho remoto, comunicação assíncrona, compras online, convivência digital tornaram-se uma realidade que chegou para ficar. Se quase todas nossas interações acontecerem online, fará cada vez mais sentido gastar dinheiro em bens virtuais.

O próximo passo para viabilizar essa transformação é a descentralização da internet. O surgimento das Organizações Autónomas Descentralizadas (DAO, Decentralized Autonomous Organization), com regras especificadas por contratos inteligentes executados e validados no Blockchain, criará entidades auto-governadas. O primeiro exemplo bem sucedido foi a Bitcoin, agora surgiram os NFTs (tokens não fungíveis, non fungible tokens), mas tudo isso é apenas a ponta visível de um processo muito mais amplo.

Por isso, ainda que os cripto ativos como o NFT possam estar inflacionados pelo hype, não se trata de uma bolha, pelo menos no sentido clássico. Estamos a assistir à estrutura central dessa mudança a ser montada e começado a ser utilizada (ou notada) por pessoas além da comunidade de utilizadores pioneiros.

Fases da web

A internet nasceu descentralizada e foi construída sobre protocolos abertos, como HTTP, SMTP, SMS, FTP E IRC para sites, e-mail, mensagens, transferências de arquivos e chats. Qualquer pessoa podia construir aplicações e um site, por exemplo, podia ser diretamente acedido por um utilizador, sem intermediários.

Em meados dos anos 2000 veio a primeira grande mudança da Internet. Conhecida como Web 2.0, essa nova internet possibilitou a construção de interfaces simplificadas e facilitaram o caminho para que qualquer pessoa pudesse ter uma presença online, com o surgimento primeiro de blogs e depois de redes sociais que tornaram incrivelmente fácil publicar qualquer coisa online, sem necessidade de saber uma linha de código sequer.

Para tornar essas interações possíveis e personalizar a experiência, era preciso recolher dados dos utilizadores. Com o passar do tempo, a capacidade de recolher dados cresceu, assim como a possibilidade de capturar valor, até esse aspecto se tornar o foco principal dessas plataformas.

Essa é a internet que temos hoje: plataformizada e centralizada. Apesar dos inegáveis avanços que essa evolução possibilitou (auto publicação, facilidade de agregação, democratização do alcance, pluralidade de vozes, a lista é imensa), as mudanças provocadas pela plataformização afastaram-nos da proposta original da internet, descentralizada e livre.

Hoje, plataformas como Facebook, Twitter, Google, Spotify etc, são as verdadeiras donas de conteúdo e, principalmente, das comunidades que criamos. Algoritmos pouco transparentes decidem o que reverbera mais ou menos. Através de termos de utilização igualmente opacos, as plataformas decidem quem pode ou não utilizá-las. E se por algum motivo decidirem encerrar o seu perfil, não pode levar o seu conteúdo, muito menos os seus seguidores para outro lugar.

Web3: descentralização

A próxima era da Internet já começou com a promessa de corrigir e aperfeiçoar alguns desses aspectos. A Web3 está a ser construída sobre redes cripto económicas, como Bitcoin e Ethereum. Combinando as melhores características das duas primeiras eras da Internet, a Web3 será formada por redes descentralizadas e governadas pela própria comunidade, com uma capacidade de gerir recursos maiores do que os serviços centralizados de agora. Junto com essas melhorias, por serem redes criptografadas e sem um responsável único, também veremos novas questões e desafios se apresentarem.

A ideia central da Web3 gira ao redor do consenso, com o aspecto financeiro embutido. Sai o conceito de um órgão centralizador para validar as ações (por exemplo, uma rede social que determina o que pode ou não ser publicado) e entra um mecanismo de consenso e validação distribuído em milhões de nós de uma rede.

Outro aspecto crucial é a interoperabilidade. O protocolo descentralizado SMTP da internet original permite que se envie um e-mail de um servidor para outro (de um Gmail para um Hotmail) sem atrito. Já na Web 2.0, centralizada, não é possível enviar uma mensagem do Twitter diretamente para o Facebook. As redes descentralizadas da web3 permitirão a interoperabilidade entre praticamente tudo, revolucionando todas as indústrias.

A tecnologia que permite isso é chamada blockchain, que nada mais é do que uma lista de registros (os blocos, block), ligados uns aos outros de forma criptografada, listados numa espécie de livro-razão digital (a corrente, chain). Como esses registos são sequenciais e validados através do consenso entre diferentes nós da rede, não podem ser modificados retroativamente.

Esse protocolo é a base da Bitcoin, a criptomoeda pioneira que inaugurou e popularizou esse conceito. As chamadas finanças descentralizadas (DeFi, decentralized finance) querem construir um novo sistema financeiro, sem instituições centrais, onde será possível construir aplicações complementarem uma sobre as outras, como Legos de dinheiro.

O discurso da descentralização soa anárquico e anticapitalista, porém ao eliminar os atravessadores e intermediários, a procura é por agregar valor através de uma conexão direta entre fornecedores e consumidores, um capitalismo radical. Não é sobre tirar dinheiro do sistema, mas sim de mudar o sistema, transferindo o dinheiro para quem cria e quem consome e para quem trabalha para manter e aperfeiçoar essa rede

A importância da portabilidade

Na Web 2.0 vivemos numa economia de aluguel. Os ativos digitais que produzimos e utilizamos todos os dias, sejam textos, fotos e vídeos que publicamos, músicas e vídeos que consumimos ou roupas e objetos que adquirimos em games, não nos pertencem, mesmo que tenhamos pago por eles.

Na Web3, os dados ficarão atrelados diretamente às pessoas, a mesma coisa acontece com valores financeiros. O utilizador pode levá-los para onde quiser, tendo total controlo sobre eles. É a portabilidade. Cria-se uma identidade digital soberana, permitindo a interoperabilidade, com todos os dados e dinheiro embutidos diretamente nos protocolos da Web3.

A partir da hora que tudo que publicar na internet for registado no blockchain de forma nativa, em formato de NFT, o autor passará a ter controlo total sobre a sua criação. Em vez de publicar um arquivo no servidor de uma rede social, por exemplo, ao criar um post estará apenas a apontar para o arquivo em si, hospedado na blockchain e atrelado à sua identidade digital. Nesse formato, os próximos (ou a evolução do) Instagram, Twitter ou Youtube servirão apenas como uma vitrine para exibir as criações dos utilizadores.

Além de ter sua autoria sempre atrelada a obra, o utilizador também terá o poder de autorizar qualquer uso dela. Essa mecânica vai tornar muito difícil para alguém publicar algo sem autorização (da mesma forma que alguém não pode simplesmente imprimir pósteres de um artista como Banksy para vender sem ter os direitos autorais para isso).

Hoje, os arquivos propriamente ditos não ficam gravados na blockchain, apenas o código referente a ele, apontando para onde encontrá-lo. Para essa transformação de fato acontecer, os arquivos precisarão estar gravados diretamente na blockchain,

A Web3 leva-nos em direção a propriedade de facto. Não apenas poderá levar esses ativos para outras partes da rede consigo, como também poderá vendê-los. É uma vantagem económica real da Web3 sobre a Web 2.0.

Para replicar as transações e propriedades do mundo físico, a Web3 precisa de uma forma de comprovar a propriedade, origem e escassez desses ativos digitais únicos. Nessa evolução descentralizada da internet, os NFTs fazem a ponte entre a Web3 e a economia virtual do Metaverso.

O que vemos agora com a ascensão dos NFTs é um caso de estudo prático, um pontapé inicial que popularizará os conceitos da Web3.

Tokens não fungíveis e chaves digitais

Non Fungible Token, mais conhecidos pela sigla NFT, são ativos não fungíveis. Fungível é tudo aquilo que pode ser substituído por outro igual, sem perda de valor. Um quilo de feijão pode ser trocado por outro quilo de feijão, uma nota de 10 reais tem o mesmo valor que outra nota de 10 reais, duas moedas de Bitcoin têm valor igual.

Ativos não fungíveis, por sua vez, são insubstituíveis ou não podem ser trocados de maneira direta. Não é possível trocar um quadro do Picasso por um do Da Vinci pois, mesmo que ambos sejam valiosos, os seus valores não têm uma relação direta. Nem mesmo dois quadros do mesmo artista têm necessariamente o mesmo valor.

Os NFTs são códigos gravados no blockchain atrelados a ativos digitais que comprovam a sua origem, autenticidade e escassez. Através deles, criadores podem assegurar a propriedade sobre as suas obras, mesmo que sejam digitais e sem limitar a sua divulgação livre na internet. A maior parte dos NFTs estão no blockchain Ethereum, que além de uma criptomoeda própria, o Ether, também oferece os chamados contratos inteligentes, acordos eletrónicos auto executáveis que hospedam o NFT e todas as regras sobre o seu uso.

Todos nós somos criadores digitais, todo dia publicamos em diferentes formatos e em diferentes redes, mas quase nenhum de nós tem controlo ou mesmo propriedade dessas criações. Toda vez que publicamos algo, transferimos uma cópia do nosso dispositivo para os servidores dessas redes sociais. De acordo com os termos de serviço de várias dessas plataformas, ao fazer isso, partilhamos também a propriedade desses arquivos.

Os modelos de monetização atuais quase nunca estão alinhados com os interesses dos criadores. As plataformas colhem a maior parte do valor desses conteúdos. O NFT permite que esses arquivos digitais sejam verificáveis e que os criadores detenham propriedade sobre eles. Inverte completamente o jogo.

As aplicações transbordam para o mundo físico. A Nike, por exemplo, patenteou um sistema para atrelar NFTs às suas sapatilhas, de maneira individual. O chamado CryptoKicks protegerá o consumidor de falsificações, pois apenas os originais terão o código verificável no blockchain.

Valor percebido

A descentralização, portabilidade e propriedade possibilitadas pela Web3 potencializa toda cadeia de valor. Porém, uma das perguntas mais recorrentes é: qual valor de algo digital é facilmente replicável? A resposta é bem simples. É o mesmo valor de ter uma obra original em vez de uma cópia, seja de um quadro ou de umas sapatilhas. Seja a coleção de Pokemon Go, sejam roupas e armas do Fortnite, esses bens digitais carregam também um valor percebido e emocional.

Os Pokémon caçados no jogo existem apenas em formato digital, mas nem por isso são menos valiosos para od seus colecionadores. Cada coleção é única e, apesar de gratuitas, existe valor social em exibir os seus Pokémon para outros jogadores. O mesmo vale para os acessórios comprados no Fortnite ou até mesmo para um comentário deixado num post no Instagram (algo fácil de forjar e que só tem valor se for possível comprovar que o autor é de facto quem diz ser.). O conceito por trás do valor percebido dos NFTs, portanto, já está bem difundido através das nossas diferentes interações online.

No caso das obras de arte digitais, a questão da cópia é ainda menos importante. Quanto mais circula livremente online, quanto mais é partilhada e vista, maior é o valor cultural dessa obra, tornando a original, canónica, verificável pelo NFT, ainda mais valiosa. A Mona Lisa ou as Marylin Monroe do Warhol originais não são menos valiosas por estarem replicadas em posters, canecas, mousepads ou capas de cadernos. Muito pelo contrário.

Para os artistas, ainda existe a vantagem de por meio dos contratos inteligentes continuarem eternamente ligados às suas obras, podendo receber uma percentagem das vendas futuras, de maneira automática. É o oposto do que acontece com as criações digitais na Web 2.0, onde uma criação rapidamente perde a ligação com o seu criador, perdendo juntamente a sua autoralidade. Para os colecionadores, os NFTs abrem a oportunidade de lucrar com a valorização das suas aquisições dos artistas que decidirem apoiar.

Uma moeda social

No meio da música é muito comum um fã se vangloriar de conhecer determinado artista desde o início da sua carreira, antes de toda a gente. Acontece que por ser muito difícil comprovar esse fato, na prática isso significa muito pouco. No fim das contas, na maior parte das vezes esse fã assiste ao show no mesmo espaço que outro que pode estar a conhecer o artista naquele momento. Isso pode ser diferente se o fã inicial for recompensado pelo artista. Pelo seu apoio inicial, esse fã pode receber um token fungível que funciona como uma moeda social deste artista. Vamos chamar esse token de $ARTISTA e supor que sejam emitidos apenas 100 unidades.

O token $ARTISTA pode ser oferecido aos fãs de graça, pode ser vendido ou conquistado através de tarefas, como ajudar na divulgação e promoção do artista, e pode dar acesso a experiências exclusivas. Pense em compras prioritárias de bilhetes, uma área especial no show, acesso ao camarim, conteúdo exclusivo ou uma interação anual online com a artista.

Agora, imagine se esse artista em início de carreira se transformasse numa Beyoncé, Billie Eilish ou Taylor Swift. Quanto valeria esse $ARTISTA após a fama que alcançaram, tanto em valor sentimental, quanto financeiro? Tanto o artista, quanto os fãs, podem lucrar com a valorização desse token.

Por terem origem, autenticidade e escassez comprováveis, NFTs ou outros tipos de token gravados no blockchain podem servir como chave de acesso para uma infinidade de opções que podem ser exploradas pelo artista ou outros desenvolvedores em diferentes ambientes digitais. As possibilidades são infinitas.

Aplicações no metaverso

Metaversos são mundos virtuais que replicam o mundo físico através de dispositivos digitais. Esses espaços geram experiências coletivas e podem utilizar diferentes camadas, como a realidade virtual e realidade aumentada, servindo como espaços de convívio e de trocas. O formato de metaverso mais popular hoje são os vídeojogos, mas também vivenciamos isso nos encontros no Zoom, nas conversas do Clubhouse ou nas compras na Amazon. A Web3 e os NFTs podem conectar esses diferentes mundos.

Na Web 2.0 os metaversos seguem a lógica comercial do aluguer das propriedades digitais. Como não existe portabilidade, o que compra num metaverso não pode ser retirado de lá. Não pode comprar uma roupa no Fortnite e vestir o seu avatar no Animal Crossing com ela.

Na realidade, sem identidade digital soberana e interoperabilidade, não podemos ser nem a mesma pessoa nesses diferentes ambientes, sendo necessário criar diferentes perfis em cada um deles. Terminamos com múltiplas personalidades, num esquema esquizofrénico. Uma das vantagens da Web3 é equacionar tudo isso. As vantagens económicas da Internet descentralizada e criptografada terão um papel importante na evolução dos metaversos. Os programadores poderão construir sobre estruturas sem permissão, numa economia com direito de propriedade muito mais parecida com a do mundo físico.

Com mais contexto para utilização dos NFTs, haverá mais incentivo para os criadores produzirem e para os colecionadores flexibilizarem os direitos sobre suas propriedades. Os utilizadores terão um leque de experiências mais ricas e também vão querer aumentar a quantidade de itens que possuem. Isso tudo considerando que a maior parte da nossa experiência ainda é mediada por telas de formatos muito limitados, retângulos sobre a mesa, pendurados na parede ou na palma da mão. Já temos experiências interativas com gadgets de áudio, porém com o avanço do 5G e da Internet das Coisas, muitas outras possibilidades vão se abrir. Questões como “porque comprar uma arte digital se não posso pendurar na minha parede?” não farão sentido algum quando surgirem novos suportes e ambientes para esses bens digitais.

Um dos maiores obstáculos para a realização desse cenário é um metaverso fechado, controlado por uma ou mais grandes empresas, sem interoperabilidade, tornando-se dominante. Pense no Facebook e no seu Oculus como vencedor e imagine um metaverso operado com a mesma lógica do império de Mark Zuckerberg. Por isso há um apoio para que o metaverso aberto na Web3 saia vencedor, obrigando as big tech a adequar-se a essa realidade, não o contrário.

O futuro digital

Os NFTs estão a demonstrar que existe um mercado para itens digitais, sem valores mediados por uma plataforma central e que possam ser exibidos em qualquer espaço virtual que se escolha. Há estudos que mostram que jogadores gastariam 63% mais em ativos digitais se eles tivessem valor no mundo físico.

Se jogadores já gastam, e muito, em ativos digitais que perdem quando param de jogar aquele jogo, dá pra imaginar o aumento desse consumo quando esses itens tiverem valor de revenda. Deixa de ser gasto e transforma-se em investimento. Os NFTs podem ser a primeira criptografia desvinculada do sucesso do Bitcoin. Têm potencial de seguir como realidade mesmo que a Bitcoin perca todo o seu valor e podem influenciar todos os softwares.

Essa, porém, ainda não é a realidade da Web3. As interfaces ainda são complicadas, pouco amigáveis para o utilizador médio. Em breve, termos como blockchain ou NFT serão absorvidos e serão compreendidos de maneira direta. Ninguém precisa explicar os detalhes de funcionamento quando fala em e-mail hoje em dia. Mas lá no início, era necessário explicar.

Os processos serão internalizados, ficarão invisíveis, serão parte integrante da rede que nos conecta. Será tudo igual, mas completamente diferente. O futuro da internet está a chegar. De novo.

Artigo de Bruno Natal, Autor – MIT Technology Review Brasil

Nossos tópicos