A Inteligência Artificial, o leitor já sabe (ela não sabe, mas você sim), está já em muitas das tecnologias que usamos hoje no nosso dia a dia e deverá estar em muitas outras mais, daqui para a frente. Inevitável.
Não é, como também se sabe, uma tecnologia em si. É um conjunto de outras tecnologias com características que os cientistas chamam de cognitivas, o que quer dizer, como o nome já revela, tecnologias do conhecimento. Tecnologias do conhecimento são diferentes da tecnologia, por exemplo, de uma escada rolante. A tecnologia de uma escada rolante, e centenas de outras mais dessa natureza, são tecnologias mecânicas e processuais básicas, sem grande… “inteligência” nelas.
Os cientistas começam a falar de inteligência no âmbito da tecnologia, quando adquirem capacidade de saber algo, aprender algo, preferencialmente que interajam com a capacidade humana de entender coisas, situações e factos. E, num passinho ainda mais adiante, refletir sobre eles. O last mile nessa cadeia de inteligências é que esta, criativamente, consiga refletir sobre coisas, situações e factos, e reagir diante de circunstâncias nunca antes conhecidas. Essa seria assim e então, a última fronteira da Inteligência Artificial, quando teria atingido um grau comparativamente humano de dedução. E, na verdade, o supere.
Nós nos auto-classificamos como Homo Sapiens, porque o que nos diferencia de outras espécies é o tal do Sapiens. Sapiens é aquele que sabe. Descartes definiu a nossa própria existência humana por essa camada, a do pensamento. Penso, logo existo, lembra-se da escola?
Mas há subtis, e vitais, diferenças entre o pensamento da máquina e o pensamento humano.
A mais avançada versão da Inteligência Artificial hoje conhecida, talvez seja o GPT-3, aquela plataforma de Natural Language Processing (NLP), que consegue escrever textos reflexivos e, digamos, “inteligentes”, porque são surpreendentemente parecidos, inclusive nos modelos de pensamento, aos que humanos (sofisticados), escrevem.
Só que mesmo o GPT-3 não tem a menor ideia do que está a escrever e “a pensar”.De facto, não entende coisa alguma. Usando os mesmos parâmetros que usamos para definir o Sapiens, o GPT-3 é …. Burrus. Assim como toda a “inteligência” artificial que conhecemos hoje.
A Inteligência Artificial é pouco inteligente porque apenas mimetiza, via algoritmos, processos encadeados de informação, que reproduzem o jeito humano de ser Sapiens. Mas não é sábia como nós, Sapiens, somos.
Voltando ao GPT-3, por ter as capacidades que tem e, graças a suas habilidades de Deep Learning, poderá transformar-se num desenvolvedor e “escrevinhador” de novos algoritmos avançados, que se aproximem mais e mais do tal mundo cognitivo, o mundo do conhecimento humano. Ou seja, máquinas inteligentes criando mais máquinas inteligentes.
Isso não vai parar mais. Só que mesmo a expressão “machine learining”, que já conhecemos bem e vemos sendo utilizada por aí o tempo todo, de facto, não significa que as máquinas aprendem. Repetem processos e códigos com os quais tiveram contacto antes. E não esquecem nunca mais. Isso porque, uma vez que aquilo com o que entrou em contato está armazenado para sempre e passa a ser acervo acessível para esta, sempre que quiser. É a partir desses ganhos de escala acumulados, que as máquinas vão sobrepondo dados e mais dados. E por eles se referirem a instância cognitiva da vida humana, chamamos de inteligência cognitiva.
No entanto, mesmo que esses avanços nunca mais acabem — e é o que vai acontecer — é altamente improvável que a Inteligência Artificial se torne, de facto, inteligência humana, deixando ser uma repetidora incremental do que coloca na sua memória.
O sonho dos cientistas nesse avanço perene das conquistas da IA é chegar ao que eles chamam de Inteligência Artificial Geral. A que temos hoje é específica (narrow). Limitada.
Seria ela que atingiria o Nirvana do pensamento absoluto, mas cá entre nós, não vai acontecer.
A Inteligência Artificial não tem consciência. Consciência é a capacidade estritamente humana de entender para além do que nos é dado e compreender circunstâncias que não tem nada a ver com a mecânica das capacidades dedutivas racionais.
A Inteligência Artificial também não tem auto-consciência. Ela não se conhece a si mesma. Não sabe o que é e não tem a menor ideia do que seja o verbo ser.
Indo além. O Watson não sabe fritar um bife. E mesmo que aprenda, não sabe plantar uma árvore. E mesmo que ele aprenda, não sabe tocar guitarra. E mesmo que aprenda, não sabe escrever uma poesia. E mesmo que ele aprenda, não sabe sonhar. E mesmo… bem… penso que sonhar as máquinas jamais conseguirão. Porque isso não é cognição. Sonhar não é conhecimento. Assim como amar e sentir também não são. E é desse conjunto de habilidades compostas que é formada a nossa consciência de seres humanos.
Os mais avançados estudos e conquistas da computação e da Inteligência Artificial estão ainda no âmbito cartesiano. Que é já um grande avanço. Mas é bem menos avançado do que a capacidade de qualquer bebê humano de se adaptar ao ambiente em que vive. Qualquer recém-nascido é uma máquina muito mais aparelhada para enfrentar o mundo do que qualquer plataforma ou sistema de IA conhecido. Burrus.
Não estou aqui a fazer juízos de valor. Só lhe estou a dizer que é assim. E, acho, será assim sempre.
Não creio que as máquinas irão muito além do âmbito cognitivo, mesmo aquelas que Ray Kurzweil garante que serão bem mais inteligentes que o Homo Sapiens, daqui a pouco.
No âmbito do mimetismo cognitivo incremental, serão mesmo. Muitas já são hoje.
Enquanto isso, nós, Homo Sapiens, para além de Sapiens versão legítima, seguiremos sendo também Homo Somniats. Ou aqueles que sonham.
Artigo de Pyr Marcondes, Autor – MIT Technology Review Brasil