Nunca vou me esquecer do dia em que estava a fazer uma pesquisa em concessionárias de veículos e ouvi de um vendedor: “o meu CRM está aqui”, apontando para um caderno que, de tão cheio de cartões de visita, nem conseguia fechar.
Durante anos, de um lado estavam os vendedores e corretores e de outro as empresas de diversos setores (construtoras, seguradoras, entre outras.) a travar uma batalha pelos dados dos clientes. Enquanto os funcionários faziam o possível para represar os dados com, as empresas tentavam de todas as maneiras furar o bloqueio usando desde programas de incentivo até ordens expressas.
O problema era que, percebendo pouco valor na partilha dos dados, vendedores e corretores continuavam a sabotar essa colaboração.
A Inteligência Artificial está a tornar-se nesse jogo para um verdadeiro “win-win”.
Imagine que é um corretor de seguros e precisa planear as visitas que fará nos próximos dias. Os critérios para esse planeamento costumam incluir, por exemplo, a proximidade entre clientes (visitar todos do mesmo bairro) ou a chance de fechar naquele mês (o incentivo da comissão). Porém, existe uma série de critérios inconscientes que o corretor leva em consideração sem perceber. Vão desde quanto agradável é o escritório do cliente, o café, a relação amigável que já tiveram no passado, a equipa de futebol, entre outros. A decisão sobre as visitas, embora pareça lógica, na verdade, é muito subjetiva.
Agora imagine um cenário em que, ao iniciar a semana, o corretor recebe uma lista que contém os seus clientes com negócios para fechar ordenados pela propensão a converter. O algoritmo trabalha para o corretor, ordenando os seus clientes de acordo com as hipóteses de fecharem negócio. A propensão é calculada em cima de centenas de variáveis, como endereço, idade, rua, produtos que já possui, tempo desde a primeira conversa, ligações, duração das interações, horário da visita etc.
É como se o sistema fosse um segundo cérebro com visão de raio X, que está a capturar dados e a trabalhar em paralelo ao corretor para ajudá-lo na sua decisão de onde colocar mais energia.
Como a IA funciona: os dados históricos de milhares de pedidos, corretores, propostas fechadas e canceladas são analisados a partir de comparações entre Entradas (endereço, idade, filhos, reuniões com o corretor, ligações, região, tempo de negociação, interações com a marca etc.) e Saídas (propostas fechadas e declinadas). O algoritmo resultante cria uma regra que é aplicada para todas as novas propostas, e assim as novas cotações ganham uma nota de propensão — de acordo com o histórico.
Esse tipo de inteligência trouxe um crescimento tão grande na eficiência (e na comissão) dos vendedores, que rapidamente deitaram os seus cadernos e as suas agendas no lixo e passaram a contar com o sistema.
A história do uso de IA nessa seguradora é tão marcante, que hoje usam a mesma ideia de cruzamentos para ajudar os RH a entender a propensão de um corretor sair da empresa. Então, avisam os gestores para cuidarem melhor daquele profissional para evitar que este se demita.
Imobiliárias: quem é o dono do ouro?
Muito mais do que recomendar qual proposta tem mais chances de fechar, os algoritmos já fazem muito mais por aí. Um exemplo acontece no mundo das imobiliárias, onde a tecnologia pode sugerir o melhor imóvel para cada pessoa. Por exemplo: uma mudança no estado civil, no cadastro, uma visita ao cartório, uma navegação diferente no site ou até mesmo uma mudança na data do pagamento antecipado do condomínio. Em todo e qualquer lugar, pode existir uma variável que vai acender um alerta para o corretor “oferecer apartamento menor, mobiliado e à vista” para aquele cliente.
A parceria entre empresas — respeitando a Lei Geral de Proteção de Dados — também é muito bem-vinda. Num exemplo recente, assisti a uma imobiliária trocar dados com um site de venda de imóveis para ajudar no cálculo de propensão de pessoas que podem se tornar inadimplentes no aluguel, criando opções de venda casada, que é boa para todos.
É claro que no mercado de imobiliárias, corretores e construtoras, também assistimos ao desafio da partilha de dados versus cadernos. Uma das soluções encontradas pelas construtoras foi o investimento em “houses”, as suas próprias imobiliárias com os seus próprios corretores. Neste cenário de relação trabalhador e empregado, a partilha de dados é uma exigência.
Longe de discutir a dinâmica do mercado “houses” versus o modelo tradicional, vou focar no impacto do uso dos dados, já que nesse modelo de partilha não existe.
Conversando com Lúcia Helena Alencar, especialista em BI, que há anos trabalha tanto no mercado imobiliário como no de veículos, apresentou—,e dados impressionantes. A conversão de leads (pessoas interessadas) em vendas tem grande salto: enquanto o padrão do mercado gira em torno de 1% a 1,5%, o mesmo sobe para 6% quando a propensão (lead scoring) entra no jogo para orientar os vendedores.
Outra mudança que a IA proporciona nesse modelo é o da melhor adequação de vendedores para cada tipo de empreendimento. Analisando os dados, descobriram que existem corretores que convertem mais de acordo com o perfil do empreendimento. O resultado mapeia o melhor corretor para cada empreendimento. A eficiência dos corretores, segundo Lúcia, chega a triplicar nesse cenário. Um verdadeiro “ganha-ganha”.
Se é gestor de uma concessionária, imobiliária, corretora de seguros, empresa de software ou qualquer outra empresa que luta contra o “caderno”, não pense que um projeto de IA é tão grande, que só as montadoras, construtoras ou fabricantes podem criar. A vantagem competitiva na verdade está do lado dos menores.
Explico: enquanto uma construtora só tem dados dos seus próprios imóveis, uma imobiliária, por sua vez, tem dados de diversos empreendimentos de diferentes construtoras, além de milhares de interessados, propostas e consumidores, já que estão na “linha de frente”. O mesmo acontece com redes de concessionárias que possuem dados de interesse dos consumidores nas diversas marcas de carro, além, é claro, dos dados de revisão, agendamento etc. Seguradoras e tantos outros negócios de representação precisam acordar para o facto de que são estas que podem ser as verdadeiras donas do ouro.
Pelo menos por enquanto.
Artigo de Fernando Teixeira, Autor – MIT Technology Review Brasil