Nos EUA, pelo menos 17 pessoas morrem por dia à espera de um transplante de órgãos. Mas e se, em vez de esperar a morte de um doador, eventualmente pudéssemos cultivar os nossos próprios órgãos?
Em meados de junho, seis anos depois de a NASA anunciar o seu Vascular Tissue Challenge, uma competição destinada a acelerar pesquisas que poderiam um dia levar a órgãos artificiais, a agência nomeou duas equipas vencedoras. O desafio exigia que as equipas criassem tecidos de órgãos humanos, espessos e vascularizados, capazes de sobreviver por 30 dias.
As duas equipas, chamadas Winston e WFIRM, ambas do Wake Forest Institute for Regenerative Medicine, usaram diferentes técnicas de impressão 3D para criar tecido hepático cultivado em laboratório que cumpriria todos os requisitos da NASA e manteria a sua função.
“De facto, tomamos duas abordagens diferentes porque ao olhar para os tecidos e a vascularização, vemos o corpo a fazer duas coisas principais”, diz Anthony Atala, líder da equipe do WFIRM e diretor do instituto.
As duas abordagens diferem na forma como a vascularização — como os vasos sanguíneos se formam dentro do corpo — é alcançada. Um usava estruturas tubulares e, o outro, estruturas de tecido esponjoso para ajudar a fornecer nutrientes celulares e remover resíduos. Segundo Atala, o desafio representou um marco para a bioengenharia porque o fígado, maior órgão interno do corpo, é um dos tecidos mais complexos de se replicar devido ao elevado número de funções que desempenha.
Tecido hepático criado pela equipe Winston para o Vascular Tissue Challenge da NASA. / WAKE FOREST INSTITUTE FOR REGENERATIVE MEDICINE
“Quando a competição foi lançada, há seis anos, sabíamos que estávamos tentando resolver esse problema por conta própria”, diz Atala.
Além de avançar o campo da medicina regenerativa e tornar mais fácil a criação de órgãos artificiais para pessoas que precisam de transplantes, o projeto pode eventualmente ajudar os astronautas em futuras missões no espaço profundo.
O conceito de engenharia de tecidos existe há mais de 20 anos, diz Laura Niklason, professora de anestesia e engenharia biomédica em Yale, mas o crescente interesse pela experimentação espacial está a começar a transformar o campo. “Os impactos biológicos de baixa gravidade vão se tornar cada vez mais importantes, especialmente porque agora existe a possibilidade de viagens espaciais privadas e comerciais, e esta é uma ótima ferramenta para nos ajudar a entendê-los”.
Mas as equipas vencedoras ainda devem superar um dos maiores obstáculos na engenharia de tecidos: “Fazer com que as coisas sobrevivam e mantenham a sua função por um longo período é realmente desafiador”, disse Andrea O’Connor, chefe de engenharia biomédica da Universidade de Melbourne, que afirma que esse projeto, e outros como ele, são ambiciosos.
Equipada com um prémio em dinheiro de US$300.000, a equipa do primeiro lugar – a Winston — logo terá a hipótese de enviar a sua pesquisa para a Estação Espacial Internacional, onde pesquisas semelhantes sobre órgãos já foram realizadas.
Em 2019, a astronauta Christina Koch ativou o BioFabrication Facility (BFF), que foi criado pela Techshot, empresa de pesquisa aeroespacial com sede em Greenville, Indiana, para imprimir tecidos orgânicos em microgravidade.
Esse projeto de pesquisa tem objetivos semelhantes aos do Vascular Tissue Challenge da NASA, diz Eugene Boland, cientista-chefe da Techshot. Só que, em vez de impressão 3D de tecido hepático, o objetivo é criar tecido cardíaco transplantável em algum momento nos próximos 10 anos.
Quais são as diferenças entre imprimir órgãos e tecidos na Terra e no espaço? Boland descreveu a diferença nas técnicas comparando a mecânica da impressão com massa de modelar à impressão com mel.
Este ano, o BFF está prestes a receber uma atualização — que Rich Boling, vice-presidente de avanços corporativos da Techshot, diz poder tornar a tecnologia potencialmente um salva-vidas mais adequado para a comercialização futura, tanto no espaço quanto na Terra. Nos próximos meses, essa atualização envolverá o acréscimo da capacidade de imprimir com agulhas de ponta romba, as mesmas usadas para imprimir em solo.
“Isso sempre foi, na maior parte, fora da Terra, para a Terra. Sempre sentimos que estamos fazendo isso por motivos como, por exemplo, a escassez de doadores de órgãos”, disse Boling.
A Techshot também prevê um dia o uso de tecidos e órgãos artificiais para ajudar a tratar doenças e até mesmo defeitos congênitos.
E órgãos artificiais e tecidos humanos são apenas dois dos muitos recursos que podem estar em demanda em futuras missões espaciais. Em breve, a Techshot planeia entrar no Deep Space Food Challenge da NASA, que terá como objetivo desenvolver opções de alimentos sustentáveis para missões tripuladas de maior duração. A empresa acredita que as mesmas técnicas de impressão 3D usadas na engenharia biomédica podem ser igualmente úteis na criação de uma fonte de alimento.
Embora demore muito para que os astronautas possam implantar tecidos artificiais uns nos outros ou se deliciar com seus hambúrgueres da bioengenharia favoritos, a bioimpressão 3D está começando a pavimentar essas possibilidades.