De tudo o que existe no mundo, o dinheiro tem a história mais bem contada. No Brasil, na Indonésia, em África ou nos EUA, todos entendem o que é dinheiro — não importa o brasão que estampa a nota. Se acredito que aquele pedaço de papel vale algo, troco por alimentação, viagem, carro ou serviços. O escambo estruturou essa relação, a partir de bens, o ouro ajudou a escalar essa troca e a construir um sistema de trocas em Roma, o petróleo no século XX ajudou o dólar a tornar-se uma moeda global, aceite em todo lugar do mundo. A digitalização das últimas décadas abriu novas formas para que essas trocas ocorram (contas online), para que pessoas emprestem dinheiro entre si sem intermediários (peer-to-peer), para novas tecnologias que impactam as finanças (Blockchain), novos ativos (criptomoedas), moedas digitais dos governos (a Digital Currency Electronic Payment, na China) e de empresas (Facebook Diem, ex-Libra).
Todo esse movimento mais recente está a ajudar a criar uma nova narrativa poderosa sobre o que é dinheiro, como podemos acedê-lo, gastá-lo e transferi-lo e, sobretudo, quais serão os pontos de contato de todas essas transações. Quando penso sobre o futuro das finanças, não vejo uma agência bancária, um cartão de crédito, nem um banco digital — como aquele que ajudei a criar, em 2016, o Banco Original. Não vejo nem mesmo um super app de um retalhista ou de um supermercado, centralizando todos os serviços que um consumidor precisa para viver e comprar. Vejo um futuro financeiro diluído, descentralizado e totalmente atrelado à minha identidade.
Até agora, vivemos uma economia que se baseia em contratos, e estes, por sua vez, são baseados em identidade, propriedade, transações e, frequentemente, em confiança. Muito também do nosso comportamento é garantido por leis. Coletivamente, os intermediários (dos quais os bancos são apenas um tipo) garantem nossas respectivas identidades virtuais e mediam as nossas transações ou decisões. Com o blockchain, duas partes comerciais podem ler e gravar num banco de dados distribuído e autenticado por uma rede global. A transação pode ser escrita em linguagem jurídica, bem como em código de computador, de forma que a própria troca de dados seja a liquidação da operação. Um token digital validará que o Guga é o Guga, que o leitor é o leitor, em qualquer situação que quiser transacionar, comprar, vender, transferir, investir.
Novas formas de realizar transações financeiras estão a surgir a partir do blockchain – e o movimento que penso que irá mais moldará o futuro das finanças são as DeFi, ou “finanças descentralizadas”. São plataformas descentralizadas que operam contratos inteligentes (smart contracts) a partir de ativos digitais (criptoativos, como o Ethereum). Funcionam peer-to-peer, sem uma intermediação de uma instituição centralizada como um banco. Além de negociar e trocar criptomoedas em contratos inteligentes, essas exchanges também permitem que o utilizador empreste as suas moedas para dar liquidez ao sistema, ganhando uma parte das taxas de câmbio.
É uma mudança na infraestrutura básica de serviços financeiros, de pagamentos e de liquidação financeira, que é praticamente a mesma há décadas. Agora, podemos lidar com negócios, pessoas e serviços por meio de algoritmos e tokens digitais num ambiente seguro habilitado com a tecnologia Blockchain. O dinheiro fica inteligente. Olhamos para ele muito além do resultado de uma troca. Deixamos de dividi-lo em caixinhas: poupança, investimentos, contas e pagamentos. Conecta-se um token no qual toda vez que faz uma transação, pode programar para onde uma parte do dinheiro que deseja comprar ou pagar algo seja destinado a um projeto, a uma organização, a um fundo social. Já pensou se já estivéssemos a fazer isso na luta pelas vacinas na Covid-19? Pode adquirir tokens digitais para investir em negócios de baixo carbono, financiando a economia verde, o futuro pós-pandemia – tudo isso no exato momento em que compra um alimento, um carro, um apartamento (tema do meu próximo artigo).
O banco do futuro vai ajudar a criar esses algoritmos, levando-os a toda população, sugerindo como esta pode usar cada funcionalidade para cada necessidade. Viabilizando tokens — e não gestores ou formulários de crédito. Não será mais a instituição onde o gerente nos diz qual seguro devemos comprar ou aumenta o nosso limite do cartão de crédito. É a instituição que irá auxiliar caso alguma transação no blockchain dê problema, que nos indique tokens verdes que nem conhecemos, que monte cenários de investimentos. Sem intermediar, mas sendo talvez um curador.
É um futuro descentralizado, mas extremamente conectado. Globalmente. Se tenho moeda digital do real, e política económica do real está a ir bem, ela valoriza. E passo a transacionar essa moeda com qualquer outra. Vou ter um valor de real e bitcoin, vou ter par, entre real e dólar, entre bitcoin e diem, diem e real e por aí vai, em infinitas combinações. Hoje apanha um Uber hoje e pode pedir um Uber, com a mesma aplicação em qualquer lugar do mundo, provavelmente vai ter wallet e vai usar dinheiro em qualquer lugar do mundo e em qualquer tipo: moeda corporativa, stable coin ou bitcoin. O dinheiro como nota, com brasão ou lobo-guará, perde a confiança. Deixa de fazer sentido, as pessoas não acreditarão mais no valor daquele pedaço de nota.
A gente transforma o mundo numa grande bolsa de valores, qualquer pessoa com wallet digital no celular pode ter qualquer ativo, de qualquer país. Não precisaremos mais de uma conta digital num banco para ter a permissão de transacionar. Não precisaremos nem talvez parar uma vez por ano para declarar nosso imposto de renda — o imposto será cobrado no momento da transação e já liquidado. Toda essa nova narrativa pode soar um tanto utópica ainda em 2021. Mas veja só o Brasil e o poder que o PIX já impulsionou na nova história de finanças: uma pesquisa recente contratada pelo C6 Bank indica que 83% dos brasileiros consideram o Pix melhor do que as transações bancárias tradicionais. Adeus TED e DOC (ainda bem).
A plataforma de transferência simultânea do Banco Central brasileiro revolucionou as transferências entre pessoas físicas — 77% das operações pelo Pix ocorrem entre elas. E este é apenas um micro exemplo do novo sistema de confiança que pautará a nossa relação com dinheiro. Falta evoluirmos em tecnologia (Blockchain) e em segurança de dados, contratos e ferramentas de autenticação de transação. Mas a inovação já bateu na porta. E é o que gosto de dizer: quando o carro é lançado, o cavalo deixa de ser meio de transporte. Pessoas podem resistir, indústrias podem lutar para manter o seu monopólio, governos podem tentar travar a inovação com regulação. Mas é uma questão de tempo para que todos usem carro e deixem de usar cavalo. É uma questão de tempo – cada vez mais curto – para que vivamos sob uma nova narrativa. E que compre, venda e gaste sob uma nova lógica.
Artigo de Guga Stocco, Autor – MIT Technology Review Brasil