A valorização de 415% da Bitcoin em 2020, em plena pandemia, renovou o interesse, a curiosidade e as perspectivas que envolvem o futuro do dinheiro. Embora seja improvável que a Bitcoin substitua as moedas existentes no curto prazo, o surgimento de ‘criptomoedas’ e ‘stablecoins’ nos últimos anos já causa grandes impactos nas movimentações do sistema financeiro global.
De acordo com o Fórum Económico Mundial, cerca de 86% dos bancos centrais do mundo estão a explorar os benefícios e desvantagens da moeda digital própria. As criptomoedas foram um tema quente na Agenda de Davos deste ano e Elon Musk já avisou: a Tesla irá aceitar bitcoins como pagamento pelos seus carros. No dia a dia, a Covid-19 também colocou holofotes sobre o futuro do dinheiro: muita gente deixou de usar dinheiro físico com medo do contágio, as gestoras de multibancos apostaram em cartões contactless, e as lives da quarentena levaram o QR Code, enfim, para casa de muitos brasileiros. Mas o que toda essa movimentação sugere a respeito do futuro do dinheiro?
O dinheiro é sempre a representação de algo. Como mostra o escritor Jacob Goldstein em “Money — The True Story of a Made-Up Thing”, é também uma “ficção útil”, que moldou as sociedades por milhares de anos. Desde a ascensão das moedas na Grécia antiga até o primeiro mercado de ações em Amsterdão e o surgimento do sistema bancário paralelo no século 21. Mas neste, até agora sistema paralelo, a velocidade das mudanças é impressionante. Já há um governo a reinventar a sua moeda (Uruguai com e-Pesos), token emitido por empresas (Libra), token descentralizado para pagar um serviço, plataformas que remuneram o anúncio de retalhistas com criptomoeda, criptomoedas que mantêm rede de computadores a funcionar (Etherium) e token digital a lastrear ativos. Mesmo no Brasil, o PIX já está a criar a nossa pequena revolução nas transferências bancárias: é mais barato (que um TED ou DOC), é mais rápido e é acessível (24h, incluindo finais de semana). Em 2020, movimentou mais de R$ 150 mil milhões.
Na pandemia também, a China começou testes oficiais para uma tecnologia nova e crucial que pode resultar na adoção mundial de moedas digitais, e estabelecer padrões para o planeta. Pequim e Suzhou distribuíram 200 mil pacotes vermelhos de presente do Ano-Novo, que podem ser baixados pelo celular, cada qual em valor de 200 yuan (cerca de R$ 168). Ao estimular a adesão em massa da população a um dinheiro digital do Banco Central, o país também olha para fora: quer bater de frente com o dólar americano e quer construir a sua própria narrativa (centralizada, de controlo e vigilância) sobre as criptomoedas. A China sabe que, por enquanto, é o primeiro país dominante do comércio que não domina o dinheiro global.
A pandemia também flexibilizou fronteiras que, até então, pareciam intransponíveis. A ascensão do Working From AnyWhere já tem levado organizações a ampliarem o panorama de contratações de funcionários remotos, em várias áreas, saindo da bolha de tecnologia. Se posso trabalhar de qualquer lugar e o meu trabalho vai ser criativo, o que muda estar em um café, na praia ou no bar? Nada. Se recebo dinheiro digital, o tipo de dinheiro que estou a receber é importante? Não. Se tenho exchange, até o yuan digital faz sentido para mim. Se tenho um security token faz diferença qual é a cor e tipo da minha carteira? Não. A junção de novos hábitos, movimentações financeiras mais flexíveis, e a consolidação de iniciativas empreendidas há anos pelos desbravadores do sistema bancário paralelo agora parecem ter chegado a um ponto de convergência. Pode ser contratado, trabalhar, ganhar e converter o dinheiro para qualquer empresa do mundo — sem precisar sair de casa.
Novos regimes tributários precisarão ser trazidos à tona — e se o imposto for pago no momento da transação, eliminamos a burocracia e é mais eficiente para todos. A segurança virá dos contratos inteligentes (que definem regras automáticas para validação) — e o Blockchain já mostrou que esta realidade é possível. O que muda na nossa relação, como indivíduo, como dinheiro? Basicamente vamos parar de vê-lo (inclusive em notas) dentro de caixinhas separadas, em contas diferentes, em bancos diversos.
O nosso RG digital (ID) garante que somos nós quem recebemos e pagamos por um bem, produto, serviço ou imposto. E, se ao longo de toda história, o dinheiro também foi usado como componente identitário, podemos esperar que daqui um tempo até o próprio conceito de cidadania seja colocado em xeque. Vamos ver uma luta de governos a avaliar quem é o seu cidadão e por que o imposto deve ser recebido em determinado território, se trabalhamos e consumimos de qualquer lugar do mundo. Perceba que o que estará em jogo não é o país onde vivemos: mas o tipo de coisa que fazemos. Ao diluir fronteiras, o dinheiro digital também integra a nossa experiência com o mundo.
Pavel Matveev, CEO da Plataforma de blockchain Wirex, diz que a adoção convencional da criptomoeda é inevitável, mas ainda não se sabe se substituirá ou simplesmente apoiará o sistema atual de moeda fiduciária. O que não parece ter dúvidas, como também garante o escritor Goldstein, é que as crenças das pessoas, bancos e governos, sobre privacidade e conveniência, estão a mudar. E, assim como a história já mostrou, a nossa relação e visão sobre o dinheiro também mudarão. “A maneira como fazemos dinheiro parecerá tão estranha para nossos tetranetos quanto os bancos a imprimir o seu próprio papel-moeda com fotos do Pai Natal”.
Artigo de Guga Stocco, Autor – MIT Technology Review Brasil