Faz quase duas décadas que o marketing — definido como a arte de criar e entregar valor satisfazendo as necessidades dos consumidores — deixou de ser apenas uma arte. O marketing digital aumentou as possibilidades, saímos de uma caixa de 6 cores para 6 milhões de cores e novos protagonistas como programadores, cientistas de dados e estatísticos entraram em cena.
No entanto, muitas empresas ainda seguem uma crença iniciada há séculos: a de aceitar desperdícios e imprecisões nos investimentos de marketing. O retalhista americano John Wanamaker — considerado um dos pioneiros do marketing no século XX, por anunciar em espaços de meia página e página inteira de jornais e por contratar redatores em tempo integral — costumava dizer algo como: “metade dos meus dólares em publicidade não funciona, o problema é que não sei qual metade”.
Wanamaker morreu antes da grande crise de 1929, e de lá para cá, tanto tempo de decisões empíricas em campanhas de marketing também fez surgir crenças como a de que o investimento em marcas e estratégias de venda pode ser dispensável — mesmo nos momentos em que mais é preciso manter ou aumentar a faturação e o fluxo de caixa. Uma investigação realizada pela McKinsey em 2019 mostrou o ceticismo dos executivos financeiros de grandes empresas com o marketing: 45% disseram que recusaram ou reduziram orçamentos de marketing por falta de clareza sobre o seu valor. Por essa razão, 40% acreditam que os investimentos em marketing deveriam ser suspensos durante recessões.
Marketing na pandemia
Com muito sacrifício, a pandemia provou que investimentos em marketing, aliados à tecnologia e inteligência de dados, podem salvar negócios — a necessidade de digitalização de quase todos os processos das empresas desde março do ano passado evidenciou-o. Restrições recomendadas pelas autoridades de saúde, como a necessidade de distanciamento social, fizeram aumentar o tempo das pessoas dedicadas às telas. Uma pesquisa da app Annie, realizada em 2020, concluiu que os adultos de Brasil, Argentina, Canadá, México e Estados Unidos têm passado em média 4 horas e 10 minutos por dia no telemóvel, tempo 20% maior do que em 2019.
Para se ter uma dimensão do que mais tempo online significa, de acordo com o Instituto Gartner, diariamente em todo o planeta, 2,2 milhões de terabytes de novos dados são gerados em média. E uma previsão para 2020 apontava um conjunto de 40 triliões de gigabytes de dados no mundo. Imagine o desafio de separar o joio do trigo. O lado bom é que já temos tecnologia e conhecimento disponíveis para essa missão. Por isso, em plena era dos dados e da informação, os desperdícios devem ser cada vez mais inaceitáveis. Como filtrar o que é útil e confiável?
Ferramentas de automação e personalização em escala conhecidas como martechs estão a revolucionar o marketing e a provar-se essenciais para a sobrevivência e crescimento de muitas empresas. São a base da transformação digital do marketing e ganham cada vez mais atenção das empresas, sobretudo durante a pandemia.
Uma expressão dessa realidade pode ser vista, por exemplo no Burger King, que em novembro de 2020, renomeou o posto de seu vice-presidente de vendas e marketing no Brasil, Ariel Grunkraut, para CMTO (Chief Marketing Transformation Officer), o que sinaliza um maior foco em inovação tecnológica para o funil de vendas. A empresa também anunciou investimentos para a abertura de novas lojas e em tecnologia para a reestruturação interna. O objetivo é fazer marketing não apenas para atrair os clientes até as lojas, mas também continuar a fidelização com a marca quando os consumidores saem das lojas. Afinal, o marketing boca-a-boca sempre foi o mais eficaz para a construção de reputação de uma marca, só que agora este é feito mais pelas redes sociais e aplicações de envios de mensagem.
Uma das pioneiras no investimento em tecnologias para o marketing é a fabricante de bens de consumo Procter & Gamble, ao aderir a compra programática de media há quase uma década. E o tema vem ganhando mais enfoque na empresa. Em 2019, a P&G anunciou ousados investimentos na construção de uma estrutura de recolha e análise de dados utilizando aplicações próprias. Assim, não precisa ficar dependente das gigantes de tecnologia para obter dados e insights sobre mais de 1,5 mil milhões de consumidores no planeta. Em paralelo, a P&G reduziu gastos com publicidade em mais de US $1 mil milhões. As estratégias coordenadas resultaram no aumento do volume das vendas.
O mercado de Martechs
As martechs são capazes de captar e refinar os dados de navegação e localização que revelam comportamentos e preferências; fornecer informações estruturadas; insights para melhor tomada de decisões — tudo isso com a velocidade e experiência que os consumidores desejam. As martechs também permitem o planeamento e a execução de estratégias cada vez mais sofisticadas de construção de marca e fidelização.
Na Amazon, por exemplo, tecnologias de aprendizagem de máquinas e inteligência artificial tomam decisões rotineiras, como a definição de preços, promoções e recomendações de produtos. “A Amazon usa tecnologias modernas para executar operações do dia-a-dia, com um sistema de dados e métricas ultra granular, de ponta-a-ponta, em tempo real, orientado por inputs e movido por Inteligência Artificial”, referem Ram Charan e Julia Yang, no livro “O Sistema Amazon”. “Tudo o que importa pode ser rastreado, medido e analisado simultaneamente, com decisões rotineiras automatizadas”. Não é à toa que a empresa se tornou numa referência global, e Jeff Bezos, o seu fundador, chegou ao lugar de pessoa mais rica do planeta, entretanto superado por Elon Musk, CEO da Tesla e da Space X.
Como se verifica, ao reduzir desperdícios e otimizar investimentos, sobra maior capacidade financeira para investir em infraestrutura e talentos, gerar valor aos consumidores a partir de inovações e conveniência, e lucros aos acionistas. Ou seja, a materialização do win-win. Os anunciantes vendem mais e os consumidores têm uma melhor experiência ao não serem interrompidos com publicidade pouco relevante para cada realidade individual — como sempre foi nos media tradicionais.
A inteligência dessas automações é construída por especialistas em processos de funil de vendas do marketing, cientistas de dados e estatísticos. Reduzir desperdícios em marketing, portanto, não significa que é recomendado diminuir os investimentos. O ideal é realocar os recursos na contratação e desenvolvimento de talentos, melhorias e atualização de infraestrutura.
Este conjunto de tecnologias quando bem utilizado consegue gerar mensagens muito relevantes para as pessoas. É por isso que hoje muitas pessoas comentam que têm a certeza de que os seus smartphones ouvem as suas conversas e parece até mesmo que leem pensamentos, de tão precisas as publicidades exibidas em ferramentas digitais, como o Instagram.
Imagine que compra uma t-shirt numa loja e lá deixou voluntariamente o seu e-mail para receber promoções. No dia seguinte ao abrir o seu Facebook a marca apresenta-lhe um anúncio de um produto relevante para quem comprou a mesma t-shirt. É isso o que a tecnologia é capaz de fazer.
Condições para prosperar
As soluções de martechs podem atuar de forma estratégica em todas as partes do funil de vendas — da captura da atenção do cliente à conversão em venda, passando pela compreensão dos hábitos e interesses de cada consumidor. Ou seja, as martechs preocupam-se tanto com o branding — a construção de percepção e valor da marca — quanto com o desempenho de anúncios publicitários e conversão em vendas.
Até quatro anos antes, estas eram praticamente desconhecidas pela grande maioria dos profissionais de marketing. Mas entre 2018 e 2019, o total de empresas de martechs existentes no Brasil cresceu 37%, somando 266 startups especializadas, de acordo com um levantamento da Liga Insights. E há muito espaço ainda para este mercado crescer. Segundo um estudo publicado em 2018 pela McKinsey (do qual participei da elaboração), 58% das empresas num grupo 79 líderes de dez setores no Brasil ainda estavam a iniciar a transformação do seu marketing digital, a partir da inteligência em integração de dados. Outros dados chamaram ainda mais a minha atenção: menos de 2% possui uma visão sistémica das soluções disponíveis para fazer as vendas crescerem.
Ou seja, existe ainda muito espaço para o mercado de martechs crescer ao mostrar provar o seu valor às marcas, consumidores e investidores. No entanto, é preciso ter em mente que implementar um ecossistema de martech depende de uma série de mudanças nas grandes organizações. O modelo operacional recomendado é o de equipas ágeis multidisciplinares, misturando funcionários da empresa da área de marketing, comunicação, tecnologia, com especialistas das startups em transformação do marketing digital, marcas, cientistas de dados e engenheiros. Mas este formato exige uma cultura de colaboração, autonomia e abertura à inovação, além de uma dinâmica de gestão de pessoas atualizada para o século 21.
Artigo de Marcelo Tripoli, Autor – MIT Technology Review Brasil