Nos anos 90, as facas Ginsu e as meias-calça Vivarina mostraram o potencial de unir diversão e produtos. Após 30 anos, a China está a reinventar o modelo que une compras e entretenimento. Saem de cena as indestrutíveis meias-calça e as facas a cortar canos, e entra o livestream shopping.
Os chineses hoje lideram o movimento global do social commerce, a união do retalho com as redes sociais. Basicamente, ao invés de entrar em sites tradicionais de compras, como Americanas.com ou Amazon, o comprador realiza a transação diretamente numa rede social. A ideia é criar a alegria da descoberta ao transformar as compras online em entretenimento. Shopatainment é a soma de comércio, conteúdo e entretenimento. O termo foi cunhado por Connie Chan, general partner do fundo Andreessen Horowitz.
Outro fator chave criado pelo social commerce é o sentido de comunidade. Ao reunir pessoas com ideias semelhantes e que podem conversar em tempo real, o ato de comprar torna-se mais divertido. Além disso, ao ver dezenas de pessoas a comprar um produto, há o fator de validação social. Por essa mesma razão os filmes mais vistos no Netflix tendem a atrair mais pessoas e os produtos mais bem avaliados na Amazon atraem ainda mais compradores.
O movimento já impacta a indústria tradicional, que vinha a perder consumidores, mas viu a mudança acelerar durante a pandemia.
Dentro do social commerce, o livestreaming ganha cada vez mais destaque. O livestreaming, a prática de realizar uma live para vender produtos e entreter a audiência, é um mercado que já movimenta cerca de US $137 mil milhões na China e atrai mais de 560 milhões de espectadores. Um crescente número de agências tem se especializado em atrair, treinar e promover estrelas do live streaming no país.
No streaming, a figura do streamer, o influenciador que comanda o show, é determinante. Além de atrair a audiência, possuem uma base de seguidores fiéis que oferece um feedback em tempo real do que está a vender, permitindo às marcas aprimorar os seus produtos e ofertas. Uma das vantagens é otimizar a produção e os stocks.
Plataformas como Douyin, Kuaishou e Taobao desenvolveram os seus próprios influenciadores e algoritmos para atrair os utilizadores e garantir que gastem cada vez mais tempo e dinheiro enquanto são entretidos pelos streamers.
A questão é até que ponto o livestreaming ganhará o mundo ou ficará limitado à Ásia. Primeiramente, é preciso entender as diferenças culturais e de plataformas. “O mercado chinês é muito mais pulverizado do que o Ocidental”, refere In Hsieh, CEO da Chinovation, empresa especializada em negócios digitais. “No ocidente temos uma grande rede de vídeos como o YouTube, uma grande rede social de fotos como o Instagram, uma grande rede social de notícias como o Twitter. Na China há diversas plataformas dentro de um segmento, o que aumenta a segmentação. Somente em streaming, por exemplo, há quatro grandes players”, acrescenta.
Outro ponto é a cultura dos influenciadores. Na China, os streamers não têm vergonha de vender e atuam cada vez mais com esse propósito. No Brasil, ainda existe um preconceito velado, uma espécie de complexo de vira-lata empresarial, como se o influenciador tivesse menos peso que uma marca tradicional. “O influenciador brasileiro ainda é um rapaz-propaganda. Apenas fala de outras marcas. Está no estágio 1. Na China os influenciadores cada vez mais se tornam nas marcas, que chamo de estágio 2, lançando os seus próprios produtos em parceria com empresas. E um número crescente deles caminha para o estágio 3, quando grandes streamers possuem as suas próprias marcas e até mesmo as suas próprias cadeias de produção. Operam as suas próprias cadeias de distribuição ou formam relacionamentos exclusivos com fábricas que produzem produtos personalizados”, afirma Isieh. Segundo este, enquanto as taxas de conversão no e-commerce giram em torno de 1 e 1,5%, no livestreaming as taxas superam 10%.
Outra diferença é que na China, boa parte dos streamers não são celebridades. São pessoas que ganham notoriedade pela sua confiabilidade em indicar produtos de qualidade. Muitos inclusive parecem pessoas comuns. A maior influenciadora de live streaming é Huang Wei, de 36 anos. Conhecida como Viya por seus 77 milhões de seguidores no Taobao Live, ela detém o recorde de vendas geradas em um único dia, com US $1,6 mil miçhões. No ano passado vendeu até um serviço de lançamento de foguetes.
Nem todos os streamers ganham milhões como Viya. Mas iniciantes como Jin He, que ganhava US $120 por mês antes de se tornar streamer, chega a faturar entre US $30 mil a US $40 mil na plataforma. O potencial de grandes ganhos atrai milhares de candidatos a streamer e estimula a crescente indústria em torno desses profissionais. Jin He, por exemplo, foi treinada por uma agência que retém parte de sua receita das contribuições de fãs e parcerias comerciais.
“Esqueça tudo que acha que sabe sobre marketing de influenciadores. Shopatainment tem mais a ver com inteligência, resistência e energia sustentada do que uma persona com um grande número de seguidores. Isso é construção de marca em um microcosmo e é mais difícil do que parece. Na Ásia, por exemplo, não são necessariamente os influenciadores existentes do Instagram que são os vendedores mais bem-sucedidos: é o equivalente a YouTubers, os “tagarelas” do Twitch; aqueles que estão confortáveis em transmissões ao vivo, improvisando e mantendo os holofotes por um longo período de tempo”, afirma Connie Chan, especialista em tecnologia de consumo.
Expansão internacional
A pressão para que as plataformas chinesas comecem a explorar novos territórios é crescente. Alibaba e Tencent possuem 90% do comércio eletrónico na China, 85% das redes sociais e 85% do mercado de pagamentos pela Internet. Da atração da audiência nas plataformas digitais, ao pagamento e até à entrega do produto, tudo pode ser resolvido digitalmente na China.
Os maiores participantes do comércio social da China também estão a resolver novos tipos de problemas de marketing e cadeia de abastecimentos no processo. Mas se essa integração gigantesca das operações digitais facilitou o crescimento do social commerce no país, agora dificulta que as empresas sigam crescendo, principalmente neste momento em que o governo aumenta a pressão para reduzir o monopólio das big techs locais. Por essa razão, parece natural que as big tech chinesas procurem novos mercados e popularizem o live streaming entre outras atividades digitais.
O crescimento de plataformas concorrentes como Pinduoduo e JD.com também aumenta a pressão pela procura de novos mercados. O TikTok é um exemplo de plataforma que viu o seu sucesso ser multiplicado ao apostar no crescimento fora da China, mas a plataforma no quesito social commerce está mais próxima dos seus pares ocidentais. Somente no ano passado, Instagram, Facebook, Shopify e YouTube começaram a tentar integrar social e comércio. O TikTok também começou recentemente a testar um recurso de compra em transmissões ao vivo.
De acordo com o Financial Times, o TikTok planeia lançar links para compras, anúncios programáticos, a capacidade das marcas de exibir catálogos de produtos no aplicativo e compras transmitidas ao vivo.
No final do ano passado o Walmart realizou nos Estados Unidos uma grande live no TikTok para vender produtos. Unir a descoberta orgânica de produtos a uma estratégia de comércio eletrónico é complicado no ocidente. Desde que o Instagram intensificou os seus esforços de se transformar num shopping moderno, começou a cair em desuso entre os utilizadores mais jovens. E o TikTok foi um dos beneficiados pela mudança. Agora, será a vez do TikTok cruzar a fronteira entre diversão e vendas.
No Brasil, Americanas e Magazine Luiza, durante a Black Friday, realizaram lives para vender produtos. Mas diferentemente do streaming commerce, para fechar a compra os usuários têm de ir para plataformas tradicionais de e-commerce das marcas: o website ou app do telemóvel.
Recentemente, a Ambev anunciou uma parceria com a NBA para transmitir os jogos da liga de basquetebol americano nas plataformas digitais da Budweiser no Brasil. Esse pode ser um exemplo de como o live streaming caminhará de maneira diferente no ocidente. Possivelmente com marcas, e não streamers, liderando a conversa nas lives de vídeo.
Seja como for, o shopatainment veio para ficar no digital. A questão é quem vencerá esse jogo e como acontecerá no ocidente. Quem encontrar o caminho para criar essa resposta ganhará biliões de dólares.
Artigo de Guilherme Ravache, Autor – MIT Technology Review Brasil