Durante anos da ascensão dos meios digitais, assistimos a uma relação delicada entre fabricantes de bens de consumo (detergentes, bolachas, bebidas etc.) e retalhistas (supermercados e lojas): uma guerra fria, em que fabricantes tinham cuidado ao falar direto com consumidores sem chatear retalhistas, que, por sua vez, eram tímidos no lançamento de marcas próprias para não incomodar os fabricantes.
Até que a pandemia mudou essa equação. Com as portas fechadas e o movimento reduzido nos pontos de venda, a relação direta passou a ser tema central dos fabricantes, e a corrida pela tecnologia explodiu. Nos EUA, segundo estudo da consultora Deloitte, o aumento na quantidade de marcas com tal iniciativa foi de 57% em 2020.
Além de casos famosos internacionais, como a Nike — que acabou de atingir a marca histórica de 33% do total de vendas globais de forma direta —, no Brasil também assistimos a novos lançamentos e até enormes crescimentos das iniciativas diretas: Melitta, Seara, Minerva, Casa Almeida, Asus e até mesmo a fabricante de bebidas Diageo, dona da marca Johnnie Walker, que viu suas vendas crescerem 33% mesmo com as portas dos bares fechadas, segundo a consultoria Hypr.
A plataforma de e-commerce Magento, por exemplo, duplicou de tamanho na América Latina no ano passado e espera duplicar novamente este ano. Entre as maiores histórias de sucesso, o destaque é para as novas relações diretas entre fabricantes e consumidores.
Mas essa relação vai muito além de abrir uma loja digital. As grandes marcas estão a usar muito mais da tecnologia, dos dados e da IA a seu favor:
Quem tem os dados do consumidor tem o poder
Quem acredita que a simples criação de um e-commerce para vender diretamente para o consumidor é a única solução está a ver apenas a ponta do iceberg. Este é só o começo. A relação entre marcas e consumidores potencializada por dados e IA vai muito além e pode até se sobrepor à relação do retalhista com o consumidor, mesmo que a compra não aconteça na plataforma da marca.
A partir da IA, diversas marcas já criaram modelos preditivos para se relacionar com clientes apresentando o que é mais relevante para a vida deles, na hora e no momento certo. Num artigo que escrevi aqui, contei o caso da Huggies predizendo gravidez antecipadamente para então introduzir a sua marca nas novas famílias. Um programa de relacionamento e descontos se inicia para prender o consumidor à marca.
Outra história recente é de uma fabricante de creme dental que descobriu, após diversas pesquisas, que o casamento é a chave para uma mudança de marca. Segundo os mesmos, consumidores usam a mesma pasta de dentes que os seus pais compravam quando moravam com eles. Quando decidem morar com alguém é que questionam qual marca o casal vai comprar. Esse é o momento perfeito (gatilho) para uma marca entrar na vida do casal.
A fabricante então usa diversas fontes de dados e uma nova relação com consumidores não apenas para vender direto a eles, mas para principalmente conseguir criar algoritmos que possam prever o momento em que aquele consumidor “juntou as escovas de dente” e vai morar com alguém. É o momento certo da ação.
Segundo a McKinsey, esse tipo de comunicação “baseada em gatilhos” pode aumentar a receita das empresas em até 15% e melhorar a eficiência de marketing em até 30%.
Tanto a Huggies como a marca de pasta dental passaram assim a ser protagonistas, donas da relação com o cliente, que pode comprar em qualquer retalhista. Mesmo que no e-commerce do retalho apareçam sugestões de outras marcas no famoso “quem compra isso também compra aquilo”, o consumidor “blindado” mantém a sua preferência.
A partir daí, o “quem compra isso” passa a ser um privilégio da marca, que pode fazer vendas casadas – de produtos complementares ou até serviços –, deixando o consumidor cada vez mais leal aos seus produtos.
Num cenário cada vez mais digital, em que o e-commerce – de alimentos, por exemplo – aumentou 59% nos EUA, deixar a recomendação de um produto na mão apenas do retalhista pode ser muito arriscado para a marca. As soluções acima contornam esse desafio.
Eficiência na compra de media
As empresas de bens de consumo são tradicionalmente grandes anunciantes, investindo milhões de reais em compra de media, principalmente na TV, para criar awareness (conhecimento) dos seus produtos para os consumidores. A procura por eficiência nessa compra, historicamente, inclui o Marketing Mix Modeling (MMM).
Por meio das análises de MMM, os meios de comunicação são analisados em modelos de regressão linear múltipla, que, a partir da variação dos dados, conseguem prever qual será o resultado em vendas de acordo com a mudança de investimento nos diversos canais (TV, internet, revista, áudio etc.). Os meios são assim priorizados na alocação de verba para o próximo período. De acordo com o Google, o retorno sobre o investimento em mídia da Hershey ‘s cresceu 40% entre 2018 e 2019 com esse método.
MMM é uma forma preditiva de planear e investir, que usa estatística para prever o futuro. Até alguns anos, essas análises demoravam semanas, e as decisões de investimento eram aplicadas no semestre ou no ano seguinte.
O que mudou:
Hoje, com a granularidade maior de dados provenientes das diversas interações com os consumidores nos meios digitais, a maior capacidade dos veículos de mídia de fornecer relatórios (on-line e off-line), as ferramentas de MarTech que conseguem rapidamente usar essa inteligência para mudar as estratégias e a comunicação com os consumidores “durante o voo”, assistimos a uma segunda onda de MMM mais dinâmica e viva.
Embarcado como IA (estatística + computação) em plataformas de marketing, o MMM está a transformar-se no cérebro de muitas relações entre marcas e consumidores. Recentemente acompanhei uma grande empresa fabricante de tecnologia e entretenimento que aplicou este novo MMM e conseguiu reduzir o investimento em media em mais de 15%. Passaram, então, a utilizar este ganho para inovações constantes no seu planeamento.
Num mundo digital de constante mudança e com verbas cada vez mais escassas, saber de onde tirar dinheiro para inovar é fundamental. É dessa forma — usando dados, propensão e IA — que empresas de bens de consumo estão a crescer muito além do e-commerce: uma combinação de estratégias de dados para se aproximar dos consumidores e aprimorar as suas decisões de investimento.
Artigo de Fernando Teixeira, Autor – MIT Technology Review Brasil