O ano de 2020 foi sem dúvida repleto de grandes desafios, mas, fundamentalmente, deixou a impressão de que evoluímos muito nos contextos de digitalização e transformação digital. O que a grande maioria das pessoas pensa, ou de certa forma, tem como sentimento, é que com uso da tecnologia os negócios foram totalmente transformados, disruptivos. Quantos já leram histórias sobre a Kodak, sobre a grande mudança no segmento de entretenimento com a chegada da Netflix, o impacto que uma Amazon trouxe para o mercado de retalho, os benefícios que a startup Trov trouxe para os consumidores de seguros de bens de consumo, de entre tantas outras mudanças importantes que tivemos no nosso mercado?
Se olharmos para o mercado brasileiro, por exemplo, tivemos a entrada de grandes players no segmento de compras e serviços, como Rappi, iFood, entre tantos outros. Normalmente quando conversamos sobre esse tema, grande parte das pessoas acaba sempre por trazer a questão que essas empresas chegaram para criar uma grande disrupção no mercado. Em parte, a grande resultante deste processo foi uma grande disrupção. Mas já parou para analisar mais friamente o que de facto cada uma destas empresas focou, executou e aprimorou de forma a causar tanto reflexo?
Analisando estes movimentos, além de serem um grande catalisador para um mercado mais dinâmico, e principalmente alinhado aos desejos e interesses dos consumidores,estes atores na verdade melhoraram uma pequena parte do processo da jornada dos consumidores daquele mercado. Quando analisamos por exemplo o mercado de beleza, provavelmente a grande maioria dos consumidores desses produtos usualmente visita alguma loja do segmento para fazer testes daqueles produtos desejados na sua pele, ou ainda para verificar também a questão visual do uso na sua coloração entre outros temas (tipo de pele etc), pois é muito complexo imaginar que as pessoas irão consumir produtos deste segmento sem antes fazer uma prova. Até porque cada produto deste segmento pode ter resultados diferentes em cada um de nós, tornando esta etapa de prova fundamental na jornada do consumidor.
Assim, analisando apenas esta pequena parte da jornada de consumo dos produtos de beleza, podemos verificar o surgimento da BirchBox, por exemplo, que criou um processo de entrega a domicílio, para os seus assinantes, de uma caixa com quatro a cinco amostras selecionadas de maquilhagem ou outros produtos relacionados à beleza. Os produtos incluem itens para a pele, perfumes, produtos orgânicos e vários outros cosméticos. Note, a BirchBox, por exemplo, apenas se focou numa das etapas da jornada, e tornou-se um dos grandes expoentes neste mercado, criando novas possibilidades aos consumidores para compras de produtos como estes online sem nunca ter visitado uma loja para prova, mudando assim, outras etapas da jornada de forma indireta, ou seja, criando uma disrupção literal no mercado.
Quando analisamos grandes companhias mundiais, exemplo da John Deere, que todos anos investe milhões de dólares no desenvolvimento de produtos melhores, mais robustos e mais inteligentes, capazes de estarem mais presentes em todas as etapas vinculadas no segmento da agricultura, por exemplo, deparamo-nos com colheitadeiras que mais parece uma nave espacial. Isto tudo é fruto do foco da empresa em estar cada vez mais presente como ator principal em todas as etapas da jornada do seu cliente — neste caso, a jornada da agricultura — desde o manuseio do solo até a escolha das sementes, uso dos produtos adequados para aquela plantação e obviamente todo o ciclo posterior. A cada ano vai se tornando mais desafiador continuar a crescer de maneira sólida neste mercado, pois obviamente com o tempo os agricultores vão deixando de trocar de equipamentos todo ano e assim aumentando o intervalo de substituição ou incorporação de novos produtos, e da mesma forma, passam a surgir, mensalmente, concorrentes que alguns chamam de nicho, startups, focadas exclusivamente em entregar a melhor experiência e retorno em apenas uma parte da jornada.
Este comportamento está a colocar em risco as estratégias de grandes players, pois pequenas melhorias em etapas da jornada podem modificar radicalmente o comportamento do consumidor, e, obviamente, criando reflexos em outros pontos dessa cadeia. Isso deve ter motivado a John Deere a mudar algumas linhas de produtos para serem oferecidos como serviços, de forma a estarem mais alinhados aos desejos dos consumidores, da mesma forma como o próprio mercado de software passou desde o início deste século, com o surgimento das primeiras empresas de SaaS (software como serviço), como a pioneira Salesforce.
Se analisarmos por exemplo o Nubank, que trouxe ao mercado brasileiro uma experiência ímpar focada em serviços aos consumidores de cartões de crédito, permitindo que estes consumidores tivessem uma experiência diferenciada no uso, administração e interação deste serviço com a instituição financeira em questão, vamos notar que a startup não focou apenas o cartão de crédito, mas acabou por revolucionar o mercado financeiro brasileiro de forma muito ampla, criando novas expectativas e assim mudando várias outras etapas deste mercado gigantesco e liderado por empresas muito sólidas.
Assim, hoje o grande desafio das empresas, para protagonizarem, além, obviamente, de não se acomodarem e procurarem sempre fugir da média, do normal, é, acima de tudo, procurar utilizar-se das melhores tecnologias para os seus produtos e serviços, mas sempre analisando a jornada de relacionamento do consumidor no seu mercado, e assim entender em qual pedaço desta jornada a empresa poderá ter mais presença, mais representatividade e obtendo assim maior fidelidade.
Não se esqueça que a Netflix não foi disruptiva com o streaming de vídeo, que, na verdade, foi utilizado posteriormente como acelerador do seu negócio, mas com a mudança de dois elos em toda a jornada do consumidor de entretenimento, a procura pelos filmes (permitindo que os consumidores receberem em casa, pelo correio os media, na época, com os filmes escolhidos) e a entrega (permitindo devoluções também pelos correios e sem aquelas restrições e penalidades como multas por atraso). O que permitiu a Netflix se distanciar da concorrência, na época, foi apenas isto, e obviamente com o tempo a empresa passou a fazer mais melhorias em outras etapas da jornada, um processo que todos devem se impor.
Poderíamos partilhar aqui muitos outros exemplos nesta linha, como Tesla, Uber, Airbnb, Zipline, Meesho, ThredUp, Trove… Mas o que quero reforçar para os executivos que lideram negócios, é que, além de se buscar as melhores tecnologias para o seus produtos e serviços, é fundamental conhecer toda a jornada dos seus consumidores, e analisar em quais das etapas desta jornada a sua empresa pode ser melhor, para assim renovar o espaço de protagonismo, ou em quais é possível fazer melhorias a ponto ser protagonista. A disrupção dos mercados nunca chega como um grande elefante, vai chegando como pequenas formigas, que vão impactando o todo com o tempo.
E como Peter Drucker dizia, há muitos anos, o nosso mercado investe muito em TI, mas a maior parte é no T de Tecnologia, deixando de lado, em muitos dos casos, o investimento no I da Informação. E o leitor, já decompôs a jornada dos seus consumidores?
Artigo de Carlos Busch, Autor – MIT Technology Review Brasil