O suporte computacional à tomada de decisão terá protagonismo no futuro da saúde. Aos gestores caberá entender e comunicar que tipo de cuidado será capaz de aliviar a pressão sobre o sistema.
Oito mil milhões de pessoas habitam o planeta Terra, segundo a estimativa oficial da Organização das Nações Unidas (ONU), e a tendência é que a população mundial se aproxime de 10 mil milhões de habitantes em 2050. Enquanto o organismo internacional atribui positivamente esse crescimento aos avanços científicos e a melhorias em questões como nutrição, saúde pública e saneamento, os dados globais alarmam gestores de saúde. Como prover assistência para tantos? No papel, a resposta pode ser simples: eficiência.
O cenário que se apresenta após o auge da crise da Covid-19 destaca novos e antigos gargalos da área da saúde. Além das oscilações epidemiológicas e do surgimento de diversas mutações do coronavírus, é registada uma onda de doenças negligenciadas durante os dois últimos anos de pandemia, que agora levam – repetindo cenas de um passado recente – pacientes à porta dos hospitais em busca de atendimento.
A falta de acesso à assistência, o aumento da prevalência de doenças crónicas, o envelhecimento da população e a dificuldade de execução de programas de vacinação em massa são exemplos de desafios da saúde pública que direcionam as discussões sobre eficiência para além do quadro administrativo e de gestão.
Em entrevista exclusiva à MIT Technology Review, o presidente de Otimização Hospitalar e diretor médico da Mayo Clinic, Jamie Newman, afirma que a Inteligência Artificial (IA) e o machine learning, através de análises preditivas e prescritivas, terão protagonismo no apoio à gestão do futuro. A comunicação e a alfabetização em saúde para orientar o uso mais racional do sistema, por sua vez, dependerão de habilidades humanas.
“A sociedade que tem acesso à saúde habituou-se a fazer exames e nunca questionar. A medicina também se habituou a esses protocolos, mas a questão é: porque precisa desse ecocardiograma? Porque precisa da tomografia computadorizada? Com uma população envelhecida, é preciso rever esses processos para entender como dar acesso ao exame certo para a condição de saúde certa. Isso construirá um sistema mais sustentável e eficiente”, avalia.
MIT Technology Review: Quais foram as principais evoluções na gestão em saúde na última década?
Jamie Newman: A mudança nas formas de comunicação e de obtenção de informação levou à evolução da gestão em saúde e trouxe um melhor resultado para o paciente final. Antes, tínhamos que tomar decisões sem informações tão precisas. Com a tecnologia moderna, podemos avaliar as situações num nível muito mais alto de complexidade, utilizando grandes conjuntos de bases de dados associados aos processos de tomada de decisão. O resultado é uma gestão mais personalizada e de acordo com cada contexto. A comunicação mudou. Podemos fazer tudo de forma mais ampla por meio da internet.
Todas essas evoluções chegaram num momento em que os hospitais estão mais cheios, não só pela Covid-19, mas porque a população tem mais acesso e necessidade à assistência de um modo geral, e inevitavelmente pressionam para que toda a cadeia do setor seja mais eficiente no gerenciamento da saúde dos pacientes.
Um exemplo dessa nova necessidade é o pós-pandemia. Por dois anos, muitos não conseguiram fazer as suas mamografias, as suas colonoscopias, e vemos que as pessoas que apresentam cancro atualmente estão em quadros mais avançados, foram prejudicadas por esse gap. Precisam de assistência e dependem de uma gestão mais eficiente para atendê-las. E as ferramentas digitais, como a telemedicina, são uma alternativa e um novo caminho para esse percurso.
MIT Technology Review: Como foi a receção das soluções digitais e da telemedicina no setor da saúde?
Jamie Newman: A telemedicina não despertava tanto interesse antes da pandemia, mas de repente tornou-se importante para a comunicação com os pacientes e mudou a maneira de nos comunicarmos na medicina. As soluções digitais foram se constituindo como ferramentas para amenizar ou diluir a pressão do sistema de saúde.
Um exemplo foi a própria Mayo. Nós temos 22 hospitais de diferentes portes. Durante a pandemia, enviámos os pacientes para o hospital que tinha camas disponíveis, mas os centros menores, que não tinham UTI, tiveram que se adaptar. As ferramentas digitais, como a telemedicina, foram essenciais. Desenvolvemos um sistema UTI por telemedicina com o apoio de consultores para doenças infeciosas. Assim, pudemos cuidar de pacientes mais doentes em hospitais menores e usá-lo em todos os camas do nosso sistema.
MIT Technology Review: Houve protagonismo dos gestores de saúde durante a pandemia da Covid-19?
James Newman: A Covid-19 pressionou muito os hospitais. Estávamos a descobrir como cuidar de uma grande quantidade de pacientes muito doentes. Não sabíamos o que iria acontecer com eles. Ao mesmo tempo, tínhamos que proteger os nossos colaboradores e lidar com a escassez de profissionais de saúde, suprimentos e equipamentos. Tivemos que lidar com essa situação da melhor maneira possível.
Nos Estados Unidos, vimos hospitais a abrir tendas de assistência do lado de fora porque não havia espaço para todos. Nós também tivemos que aprender a interagir com outros hospitais. Cada local se adaptou de acordo com as suas necessidades e procuras, mas chegou um momento em que as gestões precisaram de trabalhar juntas para encontrar soluções para gerenciar camas para pacientes, para que as pessoas não morressem sem receber atendimento.
MIT Technology Review: É possível evitar uma nova pandemia com base nos avanços da biotecnologia e no surgimento de outras soluções?
Jamie Newman: É incrível que tenhamos feito uma vacina para a Covid-19 tão rapidamente. Se fosse há 30 anos atrás, não teríamos conseguido fazer isso assim, como desenvolvemos medicamentos e protocolos para tantas outras doenças. Mas não importa o quão rápido criamos uma vacina e tratamentos se as pessoas não os aceitarem.
Podemos enfrentar uma pandemia de ébola ou alguma nova cepa de Covid. Quem sabe do futuro? O que sabemos é que as pessoas são inteligentes e têm um suporte tecnológico para criarem respostas. Ao mesmo tempo, sabemos que também podem ignorar os conselhos da ciência.
Afirmo isso porque é um exemplo vivido em todos os países. As pessoas ainda não se querem imunizar. É uma questão política, o que não é positivo para as nossas populações. A vacinação existe desde 1796 para varíola e temos que vacinar se quisermos que a nossa população se mantenha saudável.
Se quisermos evitar novos surtos e doenças infeciosas, precisamos de investir em informação de saúde confiável e combater mitos, fake news, que rondam pelo mundo fora contra a imunização. As pessoas precisam de confiar na ciência e no que ela está a entregar hoje.
MIT Technology Review: O que podemos esperar do futuro da saúde?
Jamie Newman: No futuro vamos ver mais Inteligência Artificial (IA) e machine learning a auxiliar-nos na tomada de decisão, o que já chamamos de análise preditiva e prescritiva. Teremos sistemas que vão ajudar a saber, por exemplo, nos próximos três dias, quantas pessoas provavelmente virão à nossa emergência com base em muitos fatores diferentes: gripe na vizinhança; mudança climática; surto de diarreia.
Essas informações também ajudarão a entender quantos profissionais de saúde devemos contratar, os suprimentos que devemos ter em stock. Acho que veremos cada vez mais isso, o suporte do computador à tomada de decisões a ser protagonista na forma como gerenciamos hospitais.
MIT Technology Review: Qual é o desafio atual da gestão em saúde?
Jamie Newman: A pressão de não ter camas hospitalares suficientes é um problema e vai continuar a ser um grande desafio para os gestores do futuro. Eu sei que isso é um grande desafio no Brasil, assim como nos Estados Unidos. Os pacientes ficam muito tempo internados, e não há camas suficientes para cuidar de todos.
Do meu ponto de vista, temos que mudar a nossa abordagem para entender quem precisa de ficar no hospital, por quanto tempo, como podemos ser mais eficientes, e usar a telemedicina para apoio e suporte. Além disso, devemos pensar em como manter um paciente fora do hospital, sem precisar de internação, a viver com qualidade de vida.
MIT Technology Review: O Brasil passa por uma transição etária, a população está a ficar mais velha e as necessidades de saúde vão mudando. Como lidar com esse cenário?
Jamie Newman: O número de idosos de um país é realmente um desafio da saúde pública. O Japão é um exemplo de território que está a lidar com isso porque a percentagem de idosos ainda é muito maior.
Eu vejo que o Brasil tem muitos jovens ainda para apoiar os mais velhos, assim como os Estados Unidos. A questão é que precisamos de refletir sobre a abordagem de saúde e sobre o que é o envelhecimento para a população como um todo. Precisamos de garantir que as pessoas tenham acesso ao cuidado e ao cuidado correto.
Por exemplo, se eu tenho um familiar com 83 anos com cancro avançado e a família diz “faça tudo por ele”, o que é esse tudo? É criar uma rotina stressante de procedimentos invasivos, dolorosos, ou é proporcionar tratamento para aliviar os sintomas e trazer qualidade de vida? Temos que aprender a escolher sabiamente e esse conhecimento deve ser adquirido desde a graduação dos profissionais de saúde.
Outro cenário é a quantidade de exames e protocolos que seguimos ao longo da vida. A sociedade que tem acesso à saúde habituou-se a fazer exames e nunca questionar. A medicina também se habituou a esses protocolos, mas a questão é: porque precisa desse ecocardiograma? Porque precisa da tomografia computadorizada? Com uma população envelhecida, é preciso rever esses processos para entender como dar acesso ao exame certo para a condição de saúde certa. Isso construirá um sistema mais sustentável e eficiente.