Modelos de grandes linguagens são testados em projeto do Einstein que ganhou financiamento da Fundação Bill e Melinda Gates e pretende melhorar índice de mortalidade materna em região do Amazonas.
Novo Airão, Brasil. A cidade está localizada à margem direita do Rio Negro, na Região Metropolitana de Manaus, capital do Amazonas. Não é improvável que lá, exatamente no dia de hoje, uma mulher tenha morrido durante o trabalho de parto. Pelo contrário, na Região Norte do Brasil, a possibilidade se materializa em probabilidades maiores do que no restante do país quando o assunto é mortalidade materna. Considerando que no ano de 2021 a região registrou 309.362 nascidos vivos, de acordo com o DataSUS, e 437 óbitos maternos – aqueles relacionados à gravidez ou ao puerpério –, segundo o Observatório Obstétrico Brasileiro (OOBr), isso quer dizer que o Norte possui um índice de mortalidade materna de 141,26 a cada 100 mil nascidos vivos.
A meta pactuada pelo Brasil, de acordo com números preconizados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é chegar à razão de, no máximo, 30 mortes maternas por 100 mil nascidos vivos até 2030. Embora os dados de 2022 do OOBr ainda sejam preliminares, o índice do país já ultrapassa 50 óbitos por 100 mil nascidos vivos.
Dakar, Senegal. A 5.157 quilómetros de distância de Novo Airão, no continente africano, em outro fuso horário, é apresentado para o mundo científico, no mês de outubro, que pode ser o nascimento de uma tecnologia que vem para ajudar a mudar números tão alarmantes. É a primeira vez que a África Ocidental recebe a cerimônia anual do Grand Challenges – iniciativa que apoia projetos de inovação para resolver problemas de saúde e desenvolvimento global, financiada pela Fundação Bill e Melinda Gates.
A linha de fomento que procura abordagens inovadoras e seguras usando Inteligência Artificial (IA) analisou 1.331 projetos em todo o mundo. Cinquenta e um deles foram contemplados com um financiamento de U$ 100 mil. Essa é a intersecção entre Dakar e Novo Airão: um dos projetos selecionados é brasileiro e deve beneficiar gestantes da cidade amazonense.
SAMPa: Sistema Astuto para Monitoramento de Pré-natal
O projeto é desenvolvido pelo Hospital Israelita Albert Einstein e atua no apoio tanto ao médico quanto à paciente da seguinte forma: a tecnologia é capaz de transcrever o áudio da consulta e sugerir ao profissional perguntas a serem feitas; já para a gestante, oferece um material de apoio pós-atendimento. Os médicos serão do corpo clínico do Einstein, e as pacientes serão cerca de 90 mulheres selecionadas pelas secretarias municipais de três cidades que ficam na região metropolitana de Manaus: Urucurituba, Novo Airão e Rio Preto da Eva.
“A paciente vai entrar na ferramenta e fazer a consulta como se fosse uma teleconsulta comum. Queremos voluntárias de alto risco, baixo risco, de todas as semanas possíveis. As únicas exigências são que elas sejam maiores de idade e que cadastrem um e-mail”, diz Livia Oliveira-Ciabati, coordenadora de Inovação do Einstein.
Pouco antes de embarcar para o encontro com cientistas do mundo inteiro no Senegal, a pesquisadora conversou com a MIT Technology Review Brasil sobre o programa que foi chamado de SAMPa: Sistema Astuto para Monitoramento de Pré-natal.
“A cobertura de pré-natal no Brasil é quase universal. Estamos falando de mais de 90% de mulheres que pelo menos fazem algum tipo de consulta. O problema é que a qualidade ainda não está adequada. Temos locais em que o profissional não é especializado ou então o médico, às vezes, tem pouco tempo disponível. Nessa pressão que o sistema de saúde coloca, alguma coisa falta. É um teste de HIV que não foi pedido, uma sífilis que não é tratada, enfim. A ideia é: será que conseguimos apoiar tanto o profissional quanto a gestante entregando para ela um material que vai ajudar no cuidado?”, explica Livia.
O SAMPa usa IA generativa em modelos de grandes linguagens, chamados de LLM (do inglês: Large Language Model). Esse modelo ficou conhecido pelo ChatGPT, da empresa OpenIA e essa ferramenta é inclusive usada no projeto. Livia conta que o programa vai testar quatro modelos diferentes: o ChatGPT e o LLaMA, da empresa Meta, em suas versões genéricas. E também em duas versões fine-tuning (ajuste fino): processo de treinar um modelo de IA. “Nós entregamos para esses modelos lerem o conteúdo de mais de 2 mil artigos do guideline global da OMS sobre pré-natal. O intuito é testar os modelos genéricos e os especializados e ver qual se sai melhor”, esclarece a coordenadora de Inovação do Einstein.
Durante o processo de criação do SAMPa, vários testes foram realizados no Einstein e, segundo a coordenadora, os médicos estão muito impressionados, especialmente com a capacidade de geração de conteúdo pós-consulta. A ferramenta lança mão de um material extenso e completo para a gestante, algo que um médico não conseguiria escrever logo após o término do atendimento.
Uma tecnologia escalável para o SUS
Conforme o edital da Fundação Bill e Melinda Gates, os resultados do projeto devem ser apresentados em três meses. Mas o diretor-executivo de Inovação do Einstein, Rodrigo Demarch, já deixa claro que esse é só um primeiro passo para o que a organização pretende com a tecnologia: “É uma prova de conceito, é a validação dessa tecnologia para saber se ela é segura e se pode ser confiável. Em um momento seguinte, vamos ter que fazer provavelmente um estudo ainda maior, com um número maior de pacientes, o que faz parte do processo de validação científica de uma tecnologia como essa, na área da saúde”.
Provando que o SAMPa é seguro e útil, o projeto deve partir para uma análise de impacto no sistema de saúde em um formato de Clinical Trial, com mais participantes e comparando desempenho entre grupos aleatoriamente escolhidos para ter acesso ao projeto versus outros que não terão. Demarch acredita que o SAMPa tem grande potencial de ser escalado no Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo.
“É um tipo de tecnologia muito escalável. Em termos de infraestrutura, você precisa de acesso à internet, serviço de nuvem, nada diferente do que se precisaria para oferecer um serviço de telemedicina. Se você consegue oferecer telemedicina, você consegue usar uma tecnologia como essa”, garante o executivo. E vai além: “Estamos falando do uso de uma tecnologia em que o idioma
não é uma barreira, porque os LLMs conseguem se adaptar ao português, ao inglês etc. Então temos a intenção de levar isso inclusive para outros países”, revela Demarch.
Essa caminhada ainda depende de parceiros e Livia conta que um dos objetivos da apresentação do projeto em Dakar é chamar atenção para possíveis investidores internacionais. De todo modo, o futuro do SAMPa não deve ser limitado, uma vez que é exigência do Grand Challenge que seus premiados sejam open source, ou seja, um software de código aberto. “A gente não pode liberar o uso do modelo em si, que é da Meta e do OpenAI, mas o código que a gente gerou, a forma como a gente pergunta para ter as respostas, isso vamos deixar público”, complementa.
A parceria representa a tônica dos discursos da edição de 2023 do encontro no Senegal e foi abordada com destaque pelo próprio Bill Gates. Na fala de abertura do evento, o magnata instigou o público a se questionar sobre a participação dos cientistas em prol da equidade. “Ciência vocês já estão a fazer , inovação vocês também estão a fazer. Então conversem e sejam colaborativos, porque a ciência, a inovação e a colaboração juntas podem salvar vidas”, afirmou o criador da Microsoft.