Com empreendedores e executivos focados em usar dados e computação para resolver problemas reais dos seus setores, desde baratear custos de planos de saúde até otimizar frotas de autocarros.
Quando se pensa em tecnologia e Inteligência Artificial aplicadas à medicina, é muito comum imaginar robôs a fazer cirurgias no lugar de humanos ou a interpretar resultados de exames de imagem melhor que radiologistas. Já no mundo dos transportes, os carros autónomos e os automóveis voadores são os favoritos nas nossas mentes, nos filmes e nas capas de jornal.
Porém, enquanto estes ainda não se tornam parte do nosso dia a dia, tem muita coisa que já está a ser resolvida com o uso de tecnologia, IA, estatística e capacidade analítica.
O segredo de muitas histórias de sucesso está, hoje, no uso do arsenal moderno de possibilidades técnicas para resolver problemas de negócio. Assim, são criadas empresas onde há ineficiência, seja em novas startups ou dentro de companhias existentes. Aqui, dois exemplos:
Medicina
Healthtechs é o nome que se dá às empresas de tecnologia (e/ou startups) que crescem no segmento de saúde. De acordo com o CB Insights, o financiamento global das empresas de “saúde digital” atingiu US$ 7,1 mil milhões no segundo trimestre de 2022. Já a pesquisa da Liga Ventures em parceria com a PwC Brasil registou o crescimento de 16%, entre 2019 e 2022, nas healthtechs no país, chegando a 439 empresas ativas.
Existem dezenas de tipos de empresas digitais de saúde: das que ajudam médicos a organizar as escalas de plantão até o simples agendamento de consulta médica por aplicações.
Porém, um tema que, de forma recorrente, traz contextos de ineficiência é o dos convênios médicos. Se não estão nas manchetes dos jornais a anunciar o “aumento de até 133% autorizado para 2023*”, aparecem na nossa vida quando procuramos um bom médico para um tratamento e não encontramos referências.
Uma startup brasileira, investida do americano Founders Fund, Alinea Health, é um exemplo de quem entendeu que o negócio pode prosperar a partir de dois problemas enormes para resolver: o primeiro é o das empresas que pagam diariamente mais caro por planos de saúde para os seus funcionários. O segundo é dos funcionários que não encontram o melhor médico logo de cara.
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Criando valor para as empresas
O primeiro passo para revolucionar essa indústria nasce do entendimento de uma rede de empresas em que nenhum participante tem interesse económico de reduzir o valor do plano, além da empresa que paga aos seus funcionários.
Os convênios, por exemplo, reajustam as suas tabelas para planos de saúde empresariais e coletivos por adesão anualmente com base no que foi utilizado pela empresa durante aquele ano. Dessa forma, desde todos os exames que não precisavam ser feitos até as fraudes em notas fiscais duplicadas para compensar o reembolso baixo de consulta são contabilizados.
Nessa cadeia, o hospital ganhou mais, a empresa de exames idem, o seguro também. A empresa corretora que faz o intermédio entre os dois, idem. Aliás, as corretoras ganham até 250% de agenciamento quando há troca de seguradora**. Não é à toa que – em média – as empresas não ficam mais do que dois anos com o mesmo convênio.
Quem pagou a conta foi a empresa que paga o plano e assina a carteira de trabalho dos seus funcionários. Quanto maior esse tipo de custo, é óbvio que mais difícil fica contratar novos funcionários. Um desincentivo para o emprego.
Quando a startup possibilita uma redução no número de exames, internações e consultas desnecessárias a partir da recomendação de médicos mais eficientes, o ciclo de aumentos na cadeia deixa de acontecer. Bom para todos.
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Criando valor para os funcionários
Quais os critérios que as pessoas usam para escolher o melhor médico para fazer uma cirurgia?
Pensando bem, na cabeça das pessoas, aparecem argumentos intuitivos, como o preço da consulta, a localização do consultório ou o quanto aquele médico “inspirou confiança”. Não existe um lugar onde há uma avaliação empírica da qualidade do serviço prestado.
É claro que médico não é igual a motorista de aplicações e não pode ser avaliado sob a ótica do utilizador final. Por isso, a startup tem biliões de dados de utilização de planos de saúde e diversas fontes de informações, entre registos de problemas em hospitais e o conselho médico, e usa esses dados para continuamente refinar os seus algoritmos proprietários para traçar perfis e personalizar os serviços, garantindo um atendimento diferenciado e de qualidade, evitando desperdícios e promovendo redução de custo para as empresas.
A startup conta a história de um cliente que historicamente gastava cerca de 850 mil dólares por ano em cirurgias ortopédicas de coluna e cujo custo caiu num terço. O segredo: recomendar cirurgiões que eram mais resolutivos (aqueles que geram os melhores desfechos clínicos), mais seguros (0% de taxa de novas internações, osteomielite e reabordagem cirúrgica) e 60% mais baratos do que os cirurgiões mais utilizados pela empresa.
Com a ciência de dados, consegue-se radicalmente elevar a qualidade da assistência médica e reduzir custos ao mesmo tempo. Segundo Fernando Ribeiro, fundador da startup, a empresa é “um guia médico imparcial que indica o atendimento certo, à pessoa certa, na hora certa e com o profissional certo, evitando fraudes e desperdícios em saúde”.
Transporte
O grupo JCA é dono de marcas conhecidas em transporte rodoviário. Entre elas, Cometa, Catarinense e 1001. Quando criaram a área de Ciência de Dados em 2018, um dos objetivos era o de prever a procura de autocarros.
Antes do uso de dados e ferramentas, nas vésperas de feriados, eram colocados vários autocarros ao lado das rodoviárias e, conforme a procura aumentava para alguns destinos, eram colocados novos autcarros naquela linha. Ou seja, zero previsibilidade.
Ao se buscar formas de prever a procura por passagens, outro desafio: clientes compravam as passagens em cima da hora, o que dificultava ainda mais o planeamento das operações. Dessa forma, mesmo conseguindo recolher dados históricos para analisar a sazonalidade e tendência da procura, o tempo de reação era muito reduzido.
Porém, é de se imaginar que, após muito trabalho de ciência de dados, alguma coisa poderia ser prevista. Exemplos: será que mais pessoas vão querer ir para Santos se fizer frio? E se o frio for numa véspera de feriado? E se o frio estiver acompanhado de nuvens? E se for frio com sol? Será que no frio com dois dias de sol, as pessoas não vão preferir viajar de São Paulo para Campos do Jordão? E qual seria o impacto do preço das passagens no meio de tudo isso?
E como seria a previsibilidade em casos de eventos nessas cidades? E se os hotéis já estiverem lotados? É possível recolher todos esses dados?
Depois de meses de trabalho, conseguiram combinar estratégias de canais e precificação e tornar a demanda mais previsível, gerando ciclos de vendas mais longos, que possibilitaram um melhor planeamento.
“Quando temos essa base bem formada estatisticamente, podemos trabalhar de forma combinatória, utilizando correlações, como clima, datas de pagamentos de salários e benefícios, preços de modais concorrentes e substitutos e assim por diante”, diz Daniel Limena, Chief Digital Officer (CDO) da JCA.
O refinamento dessas análises nos possibilitou não somente melhorar a previsão de procura, como também permitiu a abertura de novos negócios: uma plataforma digital que já transportou mais de um milhão de passageiros sem nenhum autocarros na sua frota (Wemobi), um clube de benefícios que utiliza dados de CRM para impulsionar a venda de parceiros e ainda um outlet de passagens.
O interessante da empresa de autocarros é ver esta a criar a “Uber da passagem rodoviária”, sem ter que esperar que uma startup entrante no mercado – como a Alinea em saúde – crie um novo modelo de negócio.
Em comum, as duas empresas usam tecnologia para resolver problemas do dia a dia enquanto aguardamos a chegada do carro voador autônomo e dos médicos robôs – se é que um dia eles virão.
Este post foi produzido por Fernando Teixeira, colunista do MIT Technology Review do Brasil.