Phygital: como absorver o atrito do físico com o digital
Humanos e Tecnologia

Phygital: como absorver o atrito do físico com o digital

É preciso refletir qual é o amortecedor para absorver o impacto e a ponte para gerar o diálogo, de forma a extrair o melhor de ambos (físico + digital) e reconhecer a existência de realidades que se complementam ao invés de se substituírem. 

Novas ferramentas, gerações, habilidades, economias e formas de governança trazem natural atrito num momento relevante da revolução tecnológica em que não há mais como separar o físico do digital — daí o termo phygital.   

Computação quântica, IA, Big Data, Dados Sintéticos, Internet das Coisas, Blockchain, Cripto, NFTs, Smart Contracts, Robótica, Drones, Impressão 3D, Digital Twin e Metaverso, são apenas algumas das tecnologias condicionantes para o desenvolvimento econômico, social e digital de qualquer nação.  

Todos esses temas e os seus dilemas éticos e de negócios, somados à perene reformulação e remodelagem da Internet ao longo dos anos, na transição da Web2 para a Web3 (utilizador como protagonista), serviram de pano de fundo para o maior e mais relevante evento de inovação e tecnologia do mundo, o Web Summit 2022.   

 “A Tecnologia deve servir para salvar e ajudar pessoas e não para destruir e matar”. Foi assim que Olena Zelenska, primeira-dama da Ucrânia, comoveu a todos na abertura do evento.   

Somente quem está a passar pelas atrocidades de uma guerra em pleno século XXI tem legitimidade para transmitir um recado tão relevante sobre os impactos da inovação e da tecnologia quando usadas para o mal, como drones suicidas, ataques cibernéticos, destruição de infraestruturas críticas e desinformação nas plataformas digitais.   

Soluções tecnológicas – e os seus usos pelos humanos – devem ser moralmente boas e corretas. É preciso buscar incessantemente a ética de dados e algoritmos (Data Ethics) by design, ou seja, desde a concepção de cada inovação tecnológica até o seu respectivo uso.  

De outro lado, há pessoas em lados opostos em conflitos armados que são combinadas aleatoriamente em jogos virtuais e capazes, por meio dos seus avatares, de ter experiências que jamais poderiam ter no mundo físico, pois atirariam umas nas outras.   

Na Internet de três dimensões (os nossos sentidos conectados ao ambiente digital), não importa o género, raça ou condição econômica, você pode ser tratado igualmente, evitando preconceitos históricos e infelizmente persistentes na sociedade.   

A sua identidade virtual no metaverso, além de mitigar discriminação, também pode complementar as suas experiências. Alguém com paralisia muscular, por exemplo, que tem a experiência imersiva de poder andar novamente ou um idoso com idade avançada que pode “dar a volta ao mundo”.   

Em ambientes digitais, como o metaverso, as viagens no tempo são possíveis e você pode entrar literalmente dentro da história, o que, aliado aos Digital Twins, permite melhorias em diversas áreas, como educação, saúde, indústria, entretenimento e comércio.    

Diversos jogos imersivos medem a fidelização das pessoas, que se não se sentirem felizes, realizadas e com uma boa experiência, deixam as plataformas.   

Segundo Sabastien Boerget, co-fundador e COO do The Sandbox, plataforma que com mais de 400 marcas dentro do seu ambiente, é preciso valorizar os seus fãs, ser leal aos utilizadores, recompensando-os pelas suas contribuições, abraçar a cultura do NFT, encorajar a geração de conteúdo pelos utilizadores e colocar a criatividade em primeiro lugar.  

 O protagonismo do utilizador  

Propriedade intelectual, proteção de ativos digitais, moderação de conduta, privacidade, proteção de dados, segurança cibernética, continuidade e escalabilidade das plataformas, user experience que promova saúde física e mental, sustentabilidade para mitigar a intensidade do uso de energia da Web3 e desenvolver experiências que sejam diversas, inclusivas e acessíveis são alguns dos desafios éticos e regulatórios do metaverso.   

Há também uma forte tendência de o utilizador assumir o protagonismo na Web3, por meio da tokenização dos seus dados, conteúdo e demais ativos virtuais, em que transações são realizadas por meio de contratos autoexecutáveis e irreversíveis (smart contracts).   

Estamos numa transição em que o sucesso dos ambientes figitais é o sucesso dos utilizadores, que querem entender as contrapartidas e serem recompensados pelos seus dados e contribuições.   

Nessa nova era, segundo alguns dos expoentes que passaram pelo Web Summit, se inverteria a lógica do capital social estar preso nas plataformas digitais (experiência pautada nos algoritmos), para ambientes descentralizados, em que o poder está nas mãos dos utilizadors, que têm a possibilidade de mudar sua experiência escolhendo os algoritmos e políticas que querem aderir. E algumas dessas aplicações se tornam comunidades. Ou seja, você poderá usar aplicações e experiências que refletem seus valores.   

Nesse sentido, a rainha Rania Al Abdullah, da Jordânia, argumentou que é muito fácil restringir notícias a conteúdo que alimenta o que já pensamos, que confirma e reforça o que já acreditamos, em que cliques recompensam conflitos e não credibilidade, em vez de trazer novas reflexões e desafios. Imagine se os algoritmos de recomendação parassem de nos enviar mais do mesmo, e, ao invés disso, encontrassem maneiras de abrir nossas mentes com novas ideias…. Imagine se a maior força da IA não estivesse em tomar decisões por nós, mas sim em nos ajudar a ser mais criteriosos nas escolhas que fazemos por nós mesmos, argumentou a rainha.    

Já para Tim Berners-Lee, criador do protocolo World Wide Web (www), a Web3 não é o futuro da Internet, pois “os armazenamentos de dados pessoais precisam ser rápidos, baratos e privados, mas na blockchain eles são muito lentos, caros e públicos”. Berners-Lee acredita em formas descentralizadas, mas que não sejam prejudicadas pelas limitações técnicas da blockchain.   

Confiança na Web3  

 Porém, se dados são a moeda da economia digital e hoje há diversos produtos e serviços gratuitos de excelência, em que a contrapartida são as nossas informações, será que não sentiremos saudades da Web2?   

Ainda, análises de crédito, prevenção à fraude, pesquisas clínicas, medicina preditiva, comércio eletrônico e assistentes virtuais, apenas para citar alguns exemplos, dependem de nossos dados para serem precisos e eficientes, e, em muitos dos casos, juridicamente, não há necessidade de consentimento de acordo com a finalidade do tratamento.   

 Ou seja, na Web3 precisaremos de um letramento digital cada vez mais ostensivo, baseado em técnicas como Design Thinking e Visual Law, para que as pessoas compreendam e confiem os seus dados para terem os benefícios e contrapartidas tão necessárias e que estão acostumadas.   

Em termos regulatórios, diante dos efeitos negativos da Web2, autoridades ao redor do mundo demonstram preocupação com a possibilidade das big techs controlarem grande quantidade de mercados, particularmente naqueles em que efeitos de rede, acesso a dados e emprego de algoritmos de IA são diferenciais competitivos relevantes (como APIs, marketplaces, sistemas operacionais, plataformas etc.), os denominados gatekeepers.  

Paralelamente, a evolução tecnológica trouxe à tona novas questões, como uso das redes sociais para disseminação de discurso de ódio e de fake news, moderação de comportamento, remoção privada de conteúdo, uso de informações pessoais para direcionamento de publicidade, entre outros.  

Como resposta, além do General Protection Regulation (GDPR) já em vigor desde 2018, em 2022, a União Europeia (UE) aprovou um pacote de regulações composto pelo Digital Markets Act (DMA) e pelo Digital Services Act (DSA). Essas normas representam um marco para a regulação de serviços e plataformas digitais visando um ambiente virtual mais seguro e competitivo. São pioneiras e implementadas por órgão internacional influente na economia global. Por isso, é possível que outros países as utilizem como modelo, fenômeno chamado de “Efeito Bruxelas”, como já ocorreu inclusive com o Brasil no caso da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), diante do GDPR.  

Em termos de IA, Rohit Prasad, VP e Head Scientist da Alexa, contou a saga do avanço tecnológico envolvendo dados e machine learning para a Alexa deixar de ser somente uma assistente virtual para se transformar numa companheira e conselheira confiável para seres humanos, podendo responder de forma entusiasmada quando você pergunta o resultado do jogo de futebol quando a sua equipa está a ganhar ou assumindo a voz de algum parente para contar histórias, suscitando questões de direito de personalidade e éticas, como eternização de pessoas falecidas.   

Em outra sala, a discussão no Web Summit colocava a complexidade da IA conseguir analisar posts em redes sociais para identificar potenciais suicidas e evitar uma tragédia ou se não seria mais eficaz simplesmente identificar tal potencial no tratamento pessoal do paciente em terapia. Conclusão: por que não utilizar o melhor de todas as ferramentas disponíveis?     

Ética e IA  

Já a computação quântica, ao mesmo tempo que emerge como uma das tecnologias mais importantes das últimas décadas, por ser promessa de paradigma de capacidade computacional, dá origem a outros desafios éticos, como a possibilidade de quebrar protocolos de criptografia, com reverberações em termos de segurança cibernética, privacidade e proteção de dados. Illana Wisby, CEO da Oxford Quantum Circuits, comentou que poderia ser possível isso acontecer em cerca de 15 anos. Por isso, é importante debatermos o tema sob a perspectiva ética desde já.   

Michael O’Flaherty, Diretor da Agência da União Europeia para Direitos Fundamentais, foi bastante enfático ao defender a necessidade de regulação da IA por trazer impacto em praticamente todos os direitos fundamentais (educação, trabalho, saúde, liberdade de expressão, privacidade, entre outros). Mas, de acordo com o risco e não para quaisquer hipóteses, como recomendações de filmes da Netflix, por exemplo. Também disse ser impensável autoridades fiscalizarem todas as aplicações de IA existentes. Por isso são necessárias novas formas de regulação, como códigos de conduta setoriais (autorregulação), que podem ser reconhecidos pelo Estado (autorregulação regulada). Apontou como um dos maiores desafios entender qual o limite de abertura dos segredos de negócios (algoritmos) das empresas que usam IA para realização de avaliações interdisciplinares dos seus limites éticos e legais.   

No Brasil, UE, EUA, entre outras dezenas de nações, há intensa discussão de regulação de IA, definindo-se não apenas padrões éticos e de accountability, mas também questões como regime de responsabilidade civil, requisitos mínimos para a disponibilização no mercado, sanções e autoridades competentes.  

Os nativos digitais  

Outro tópico relevante tratado no evento, que se soma às demais, foi de uma geração nativamente digital que chega com tudo ao mercado de trabalho, de investimentos e de consumo, a geração Z, que é composta de pessoas que nasceram entre a segunda metade dos anos 1990 até o início do ano 2010.   

A geração Z quer ser ouvida, sabe questionar e busca incessantemente a autenticidade das marcas e dos valores corporativos. Quer trabalhar para uma empresa verdadeiramente transparente, tolerante, que pratique a diversidade e tenha um propósito social maior.   

Pelo facto de terem crescido inseridas nas redes sociais, as decisões tomadas por essa geração passam pelas plataformas digitais, preferindo fazer buscas no TikTok ou Instagram ao invés do motor de busca. Faz parte da nova dinâmica marcar outras pessoas nos posts, responder e curtir comentários.   

Deu gosto assistir Harris Reed, ZEO da Edelman. Uma das maiores empresas de Relações Públicas do mundo contratou alguém da geração Z como executivo (consultor cultural e criativo) para aproveitar as perspectivas e ambições dessa geração e encontrar soluções para diversidade, sustentabilidade, mudanças climáticas e alinhar-se aos interesses das marcas em promover mudanças.    

A tecnologia pode fazer mais  

 Como visto, são muitos elementos que geram atritos no mundo phygital. É preciso refletir qual é o amortecedor para absorver o impacto e a ponte para gerar o diálogo, de forma a extrair o melhor de ambos (físico + digital) e reconhecer a existência de realidades que se complementam ao invés de se substituírem.    

Para concluir, cito a novamente a primeira-dama da Ucrânica, Olena Zelenska, que disse que a tecnologia pode fazer mais do que mover o mundo, pode determinar a direção em que o mundo se move.   

A ausência de cuidados e diligências éticas na adoção de soluções inovadoras pode não apenas provocar efeitos danosos sobre as pessoas afetadas, mas representar riscos significativos de confiança no ambiente phygital.
 

Este artigo foi produzido por Rony Vainzof, na MIT Technology Review Brasil. 

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