A importância de desapegar das crenças do passado, absorver novos conhecimentos e reformular a visão do mundo e dos negócios, o tempo todo.
Para começar, queria pedir que se imaginasse como um detetive famoso – pode ser Sherlock Holmes, Poirot ou até mesmo o detetive Mac Taylor, de CSI Miami. Literalmente, poderia ser qualquer detetive.
E vamos fingir que você está a trabalhar num caso importante, o caso de uma importante obra de arte que foi roubada.
Digamos que esteja bastante confiante de que o dono da pintura é culpado: foi o primeiro a ligar para o 911, sim, é verdade, mas ao mesmo tempo ele sempre agia de maneira muito estranha quando lhe perguntavam sobre o seu paradeiro durante o dia em que a pintura desapareceu, dando uma resposta meio confusa. Ao mesmo tempo, você descobriu que ele aumentou o prémio do seguro algumas semanas antes disso acontecer. Diante dessas evidências, você considera-o o principal suspeito.
Imagine, no entanto, que depois de alguns dias, a equipa forense regressa ao seu lado com evidências de que as impressões digitais de outra pessoa foram encontradas na cena do crime, e uma filmagem de uma câmera de vigilância foi encontrada, mostrando um homem com capuz, entrando na casa à noite, enquanto ninguém estava lá.
Diga-me: o que você faz? Você continua a investigar o proprietário por causa das evidências anteriores ou atualiza a sua lista de suspeitos com base nas novas evidências?
Bem, definitivamente atualizará as suas suspeitas diante das novas evidências (embora isso não signifique que o dono da pintura não tenha sido culpado, pois poderia muito bem ter contratado alguém para roubá-la e receber o dinheiro do seguro). Também porque, se você não atualizasse o seu pensamento, seria culpado de negligência como detetive. Certo?
A verdade é que a mesma coisa se aplica a muitas outras situações na vida e nos negócios: pense num médico que não muda a sua prescrição para um paciente, mesmo depois que uma nova análise de sangue mostra que o primeiro diagnóstico estava errado e o tratamento não estava a funcionar.
Você deve estar pensando: “Isso é uma loucura”! E você está certo! Estes podem até ser considerados crimes! Mas deixe-me trazer a provocação para a mesa aqui: não é isso que fazemos, nos negócios e na vida, o tempo todo?
A vida, os negócios e o mundo como um todo, mostram-nos novas evidências o tempo todo, mas não atualizamos as nossas crenças diante dessas evidências e muitas vezes mantemos o bom e velho status quo.
A pergunta que não quer calar, porém, é: por que tudo isso acontece? Como podemos superar isso? E particularmente, como isso afeta nossa habilidade como líderes de navegar o mundo da Web3? A resposta tem muito a ver com uma experiência feita nos anos 50, do qual iremos falar neste artigo.
Em 1951, um investigador da Universidade de Chicago, o Carl Dallenbach, fez um experiência: mostrou para muitos participantes da pesquisa uma imagem confusa, com muitos pontinhos, em branco e preto. Inicialmente, ninguém conseguia ver nada nela, e todos, meio que em consenso, respondiam que aquela imagem não dizia ou significava nada.
Dallenbach, então, dava a dica de que se tratava de uma vaca e todos ficavam inicialmente surpresos, sentindo-se estúpidos por não terem percebido isso antes, e admitiam que não conseguiam deixar de pensar nela ao ver aquela imagem.
Bom, esse é o fenómeno que a Amy Webb chama de repercepção. Do que isso se trata, e por que é tão importante em um mundo que muda de forma exponencial?
Veja bem, o futurólogo Alvin Toffler já disse que “o verdadeiro analfabeto do século 21 não é quem não sabe ler ou escrever, mas quem não sabe aprender a desaprender e reaprender o tempo todo”. O que ele quer dizer com isso? Justamente que talvez a maior habilidade de hoje seja a nossa habilidade de ter repercepção!
O que é isso? Fundamentalmente é a “mente de principiante” da qual falo nos meus outros conteúdos, ou seja, essa nossa habilidade de se desprender de nossas crenças do passado, e de absorver novos conhecimentos e reformular nossa visão do mundo e dos negócios, o tempo todo. Um pouco do pensamento crítico que olha para os novos problemas que surgem no seu mercado, e os resolve constantemente se reinventando, sem esperar que os outros resolvam eles antes que você.
Uma companhia que soube reperceber as mudanças no mercado e se reinventou múltiplas vezes diante delas, é a Nvidia, empresa que começou com GPUs e depois ampliou para se tornar uma empresa verdadeiramente de Inteligência Artificial, e que hoje tem a ambição de se tornar a empresa líder na construção do Metaverso. A percepção inicial que era de se considerar uma companhia só de GPU, não a limitou a se reinventar na era da Inteligência Artificial, e hoje na era da Web3.
Vamos criar um exemplo prático, que sirva para analisar os impactos da Web3 na área farmacêutica.
Imagine que você é o líder de uma empresa de bens de consumo que fabrica champôos, e descobre que um certo lote do produto está provocando um efeito colateral por causa de um erro de fabricação. Esse lote, de milhares de champôos, já havia sido vendido mês passado para o seu distribuidor, o seu distribuidor revendeu para pequenos lojistas da região, e os pequenos lojistas revenderam praticamente todos esses champôos para os clientes finais. Aliás, sendo que têm muitos anúncios na Amazon e no Mercado Livre deste champôos por parte de terceiros, você também pode imaginar que alguns já foram revendidos pelo cliente final para outros consumidores. Você, como líder, quer rastrear todos os produtos desse lote com rapidez, e convenhamos, a primeira crença que vem à tona é obviamente: “Bom, já que eu não vou saber com rapidez e, exatamente quem está com esse champô, terei que pensar em um plano B, e se não funcionar, no plano C”, descartando, desde logo, a possibilidade que possamos saber, em tempo real, quem são os consumidores que compraram.
Mas e no mundo da Web3? Olha que interessante, essa crença já não funcionaria mais, pois a verdade é que, através do blockchain, na medida que as transações entre clientes forem feitas, você saberá exatamente com quem estão os produtos, em tempo real, e poderá avisar aos clientes e realizar o recall.
Perceba que o mundo da Inteligência Artificial e da Web3 quebrará as crenças do passado o tempo todo, e nos mostrará novas evidências a todo momento, mas se, como líderes, não tivermos a habilidade da repercepção, ficaremos travados e inflexíveis diante destas mudanças! Ou seja, a habilidade do líder, na Web3, não é mais apenas a de perceber, mas de reperceber. Não só de pensar, mas de repensar o tempo todo. Não só de tomar boas decisões, mas de repensá-las o tempo todo, diante de novas informações e mudanças externas.
O grande problema? Enquanto a tecnologia muda e evolui de forma exponencial, o pensamento humano só se atualiza de forma linear.
Para ilustrar o ponto, tomemos emprestado a famosa história da origem do jogo de xadrez. Diz a lenda que o criador do xadrez presenteou um imperador na Índia. O imperador ficou tão impressionado com a engenhosidade do jogo que se sentiu obrigado a dar uma recompensa ao homem e perguntou o que ele gostaria de receber. O homem, humildemente, respondeu: “Oh imperador, meus desejos são simples. Eu só desejo o seguinte: dê-me um grão de arroz para o primeiro quadrado do tabuleiro de xadrez, dois grãos para o próximo quadrado, quatro para o próximo, oito para o próximo e assim por diante, para os 64 quadrados, com cada um tendo o dobro do número de grãos do quadrado anterior.”
O imperador ficou surpreso que este homem engenhoso quisesse apenas alguns grãos de arroz como recompensa por um jogo tão maravilhoso. Sem pensar muito, ele concedeu ao homem os seus desejos. Foi só algum tempo depois que seu tesoureiro voltou e avisou ao imperador que seria impossível pagar ao homem a quantidade solicitada, pois a quantidade de arroz somava uma quantia astronómica, muito mais do que seu império poderia produzir em muitos e muitos séculos.
Como o imperador pôde ser enganado tão facilmente? Simples. Ele estava a pensar linearmente como a maioria de nós costuma fazer, enquanto o homem engenhoso entendia e usava o poder da curva exponencial. E é aqui que está a ameaça, ou a oportunidade, dependendo do seu ponto de vista e do horizonte de tempo em que você a vê.
Gerd Leonhard, um futurista conceituado, é conhecido por dizer que a tecnologia é exponencial, mas os humanos não. Seu conselho é: não tente competir com as máquinas. Ao invés disso, concentre-se em fazer as coisas que são inerentes ao ser humano e que as máquinas não podem copiar. É justamente essa a maneira que o líder da era da Web3 precisa olhar para o futuro e estabelecer a sua visão estratégica.
Este artigo foi produzido por Andrea Iorio, colunista da MIT Technology Review Brasil.