Apesar de a OMS incluir as dimensões mentais, emocionais e sociais no conceito de saúde, o preconceito fez com que este tema não fosse tratado abertamente nos ambientes de trabalho. A pandemia evidenciou a preocupação com o assunto e hoje, certamente, é um dos grandes desafios para as organizações.
As doenças mentais eram tabus. Apesar de sempre terem feito parte do mundo do trabalho, este tema não era tratado de forma tão aberta quanto outros. Mesmo antes da pandemia já existiam indicadores preocupantes quanto à incidência de afastamentos do trabalho e impactos na performance dos indivíduos devido a disfunções psíquicas, depressão, síndrome do pânico, ansiedade, e outros conforme apontam dados do INSS e de outras entidades que levantam dados sobre o assunto.
– Em 2020 houve um aumento de 26% de afastamentos do trabalho por disfunções psíquicas em relação a 2019;
– O número de concessões de auxílio-doença para depressão e ansiedade passou de 213,2 mil, em 2019, para 285,2 mil, em 2020, um aumento de 33,7%;
– A duração média dos afastamentos, nos casos de doença mental, é de 196 dias;
– 53% dos brasileiros declararam que seu bem-estar mental piorou com a pandemia;
– 79% das pessoas relataram ter sofrido stress no trabalho;
– Depressão é a principal causa de pagamento de auxílio-doença não relacionado a acidentes de trabalho (30,67%), seguidos de outros transtornos ansiosos (17,9%).
Os impactos
Segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde, 30% dos trabalhadores têm transtornos mentais e estão entre as principais causas de perda de dias de trabalho no mundo. Os casos leves causam, em média, perda de quatro dias de trabalho/ano e os graves cerca de 200 dias de trabalho/ano, o que se estima custar US$ 1 trilião à economia global a cada ano em perda de produtividade. A previsão é que até 2030 sejam US$ 6 triliões. Já a Lancet Commission prevê que os distúrbios mentais podem custar cerca de US$ 16 triliões entre 2010 e 2030 se as medidas necessárias para tratar e reduzir os casos não forem tomadas.
Não restam dúvidas que a pandemia exacerbou a incidência de problemas psíquicos em geral, mas aqui o olhar será para o mundo do trabalho. Segundo uma pesquisa recém-publicada pela Associação Brasileira de Recursos Humanos de São Paulo, a saúde emocional e mental está na agenda estratégica de 88% das empresas pesquisadas e 78% afirmam que este pilar do bem-estar dos colaboradores representa a maior dor da empresa neste último ano, cuja evidência encontra-se em alguns dos indicadores utilizados pelas diferentes companhias, como: adesão, uso, participação e permanência em programas de bem-estar; sinistralidade dos planos de saúde; absenteísmo; indicadores médicos de saúde; clima organizacional; afastamentos; turnover; índices de produtividade; NPS colaborador; índices de felicidade e de bem-estar (que algumas empresas já calculam).
A pesquisa da ABRH-SP também chama atenção para o aumento de casos de burnout e de suicídio entre os seus colaboradores. Em 2022 a Síndrome de Burnout entrou para a Classificação Internacional de Doenças como CID-11 e se tornou uma doença ocupacional. O Brasil é o segundo país no mundo em número de casos. Um em cada três trabalhadores brasileiros sofre com sintomas do Burnout.
Ainda não conhecemos tudo
Provavelmente, daqui há algum tempo, teremos dados mais sistematizados relacionando à “Grande Renúncia” com as questões de saúde mental, pois uma das perspectivas de análise pode ser de um movimento de profissionais evitando adoecimentos mais graves, inclusive burnout, dada a sua insatisfação com o trabalho relacionada e diferentes fatores, como falta de alinhamento de propósito, valores, expectativas, elementos típicos de um contrato psicológico entre empresa-empregado.
O estudo relata que depois da falta de orçamento, o segundo entrave para implantar programa de bem-estar e saúde mental é o engajamento das pessoas. A justificativa para a falta de fidelização é atribuída à falta de tempo, à cultura não valorizar o cuidado com as pessoas (apesar de, paradoxalmente, estar na agenda estratégica da maioria das empresas) e o estigma que ainda existe com estas questões.
Questionadas sobre o fator crítico de sucesso dos programas de bem-estar, as empresas apontam a liderança e o processo de conscientização por meio de marketing interno. A tecnologia foi o segundo maior investimento das empresas, depois da contratação de empresas de consultorias especializadas em saúde mental e bem-estar, para implementar um programa robusto com este propósito.
A contribuição da tecnologia
Este ponto é o objetivo desta reflexão: como a tecnologia pode ajudar o processo de valorização da saúde mental dos trabalhadores e o que evoluiu neste sentido com a pandemia?
O investimento das empresas em sistemas e ferramentas para contribuir com o bem-estar de colaboradores é um indicador de como a tecnologia neste caso, está mais para “jovem” do que para bandido. Sabe-se que alguns estudos apontam a tecnologia como vilã, mas ao observamos mais atentamente, percebemos que a vilã não é a tecnologia, mas o excesso do seu uso, tanto por crianças, adolescentes e adultos, causando problemas de dependência como qualquer outro (álcool, cigarro, drogas, alimentos, até trabalho).
A começar pelo fato de que por meio da tecnologia foram minimizados impactos negativos do isolamento social e foi possível trabalhar, tomar decisões, resolver problemas, comunicar, celebrar, não apenas no trabalho, como também no campo das relações familiares e sociais.
Não há dúvidas que a tecnologia contribuiu positivamente com a melhoria de um cenário que poderia ter sido ainda mais crítico, com a humanização das relações e efetivamente para o apoio e tratamento das doenças psíquicas. Desde o processo de fidelzação em programas de bem-estar em que se utiliza principalmente e-mails, palestras via ferramentas de vídeo conferências (síncronas), intranet, redes sociais e uso de aplicativos específicos para esta finalidade, até o uso de telemedicina que passou inclusive por regulamentações para preservar determinados princípios da relação paciente-profissional (médico, psicólogo, terapeuta e outros).
O Google Trends mostra que, na primeira quinzena de quarentena no Brasil, houve aumento de 88% nas buscas por terapias online, este dado associado a outros mostra uma tendência no aumento do uso de plataformas e aplicativos de bem-estar. Segundo o estudo PICCovid (ObservaPICS, Fiocruz, ICICT e FMP), “em 2020 mais da metade (61,7%) dos brasileiros buscou terapias complementares voltadas à questão da saúde mental”, tanto por meio dos SUS quanto através de empresas privadas e até aplicativos, inclusive de meditação e yoga. Além de gerar benefícios aos colaboradores e evitar problemas (como LER e Burnout), soluções tecnológicas de saúde mental podem estar vinculadas ao RH, dando acesso a dados para tomada de decisão estratégica.
Outro exemplo da tecnologia a ajudarem no diagnóstico e no tratamento de doenças mentais é o uso ainda bem restrito da IA para reconhecer a ansiedade pela voz e movimentos. Luís Augusto Rohde, referência internacional no campo da psiquiatria e saúde mental, afirma que a tecnologia terá papel importante para entender o comportamento digital das pessoas e evitar possíveis crises. Segundo este, uma série de dados sobre hábitos dos pacientes auxilia na prevenção de outras doenças, o que é importantíssimo para aproximar a saúde mental de outras áreas da medicina.
Rohde ainda considera que a falta de acesso a uma rede capacitada em atenção primária e secundária para dar acolhimento aos pacientes com transtornos mentais no sistema público tem levado os planos de saúde a entender que se não trabalharem a questão de saúde mental, terão um custo maior na jornada de desenvolvimento do paciente, porque lá adiante surgem não só os problemas de saúde mental crônicos, como também a interface cada vez maior que se entende da relação saúde mental e saúde física.
O papel das organizações
Focando no papel das organizações para minimizar os riscos de adoecimento mental, uma investigação do International Workplace Group identificou que 93% dos trabalhadores desejam liberdade para decidir onde e quando farão o seu trabalho. Empresas que ofereçam jornadas de trabalho mais flexíveis, em questão de horários e presença, serão as mais procuradas, além do modelo híbrido de trabalho, outra grande tendência, já observada na Europa, é a redução da jornada para 4 dias úteis.
Como o futuro é digital, uma pesquisa da Microsoft demonstra que 42% dos líderes da América Latina e 34% dos líderes do Brasil dizem que a construção de relacionamentos é o maior desafio de ter funcionários trabalhando de forma híbrida ou remota
O Gallup mostra que o mau relacionamento com os gestores é o principal motivo para 75% das pessoas deixarem seus empregos e que 70% dos líderes não estão preparados para cumprir a sua função, gerando um prejuízo de mais de 300 bilhões de dólares na economia globalmente.
Tudo isso aponta para a necessidade de que o investimento em novas tecnologias venha sempre acompanhado de capacitação de líderes e de profissionais em geral, no que hoje tem sido chamado de competências essenciais, que estão relacionadas à inteligência emocional, tais como autoconhecimento, automotivação, autocontrole, resiliência, empatia e relacionamento interpessoal. Este último apontado por diferentes estudos, um deles, a pesquisa longitudinal da Universidade de Harvard sobre o desenvolvimento humano, bem-estar e longevidade como elemento chave para a saúde, física, mental, e para a percepção de bem-estar.
Além disso, o relatório Gallup apontou que as características mais importantes numa empresa para os trabalhadores, atualmente, são: cultura positiva (46%); benefícios de saúde mental (42%); senso de propósito (40%) e jornada flexível (38%). Isso torna crucial repensar todas as etapas do ciclo de vida do empregado, desde a atração até o desligamento e considerar seus impactos na saúde mental. A Employee Experience precisa estar baseada em novas premissas que considerem estas dimensões da saúde integral. A inclusão da saúde mental pode ajudar a reduzir custos e melhorar a reputação da empresa, além de reforçar o papel social da empresa como promotora do bem-estar.
Este artigo foi produzido por Denize Dutra, colunista do MIT Technology Review do Brasil.