Voltar para o formato tradicional de trabalho não faz sentido em empresas que valorizam a diversidade
Desde novembro de 2022, os trabalhadores da Apple em Cupertino, na Califórnia, foram obrigados a dar expediente na sede em pelo menos três dias por semana – dois deles fixos e um terceiro a ser determinado pela chefia. Para muitos funcionários, a postura da empresa de tecnologia mais valiosa do mundo não passa de intransigência. Para o público em geral, não deixa de ser surpreendente, já que a Apple é tida como sinónimo de inovação, além de não lhe faltarem ferramentas para, passado o pior da pandemia de Covid-19, manter um sistema de trabalho mais flexível.
Voltar ou não aos escritórios é questão hoje, e a discussão nas empresas vem a ser movida mais por argumentos passionais do que racionais. A Apple nem é o melhor exemplo. No fim de maio do ano passado, Elon Musk incendiou as redes sociais ao afirmar que home office não seria mais aceitável na Tesla. Passava-se a exigir “no mínimo 40 horas de trabalho por semana” no escritório para os executivos que ainda desejassem desempenhar parte das suas funções remotamente. Pelo contrário – reforçou no Twitter –, que fossem “fingir trabalhar” em outra empresa.
Por aqui, muitos fazem coro, recomendando nas suas redes sociais que os empresários deixassem de ser reféns de pessoas descomprometidas que ficavam enrolando em casa.
À parte a arena das redes, nenhum debate pode prescindir, em primeiro lugar, de que se reconheça que os dois anos de home office transformaram radicalmente o mercado de trabalho no país. Ainda no começo da pandemia, em 2020, 43% das empresas brasileiras fizeram a migração para o regime remoto, segundo a consultoria BTA. E, ao contrário do que sugere o movimento da Apple e da Tesla, empresas de tecnologia estão à frente na flexibilização da rotina de trabalho, combinando a autonomia do remoto com o relógio de ponto presencial.
Não é algo em que se pode voltar atrás por capricho, porque os dois anos de pandemia cristalizaram uma transformação cultural, na maneira como entendemos a rotina de trabalho. Uma tendência que se traduz em números mais recentes. De acordo com uma pesquisa da plataforma Catho, as vagas remotas cresceram 496% no primeiro semestre deste ano em relação ao mesmo período do ano passado. E é na área de tecnologia, justamente, em que prospera um esquema de trabalho mais flexível, com um salto de incríveis 5.857% para programadores, uma categoria, diga-se, que já tinha um mercado grande de trabalho remoto mesmo antes da pandemia.
Densidade de talentos
São postos abertos para todo o território nacional, e este é um aspeto que precisa ser ressaltado. O regime de trabalho mais flexível abriu portas no Brasil para pessoas que não vivem no eixo Rio-São Paulo, e que não podem se deslocar por uma série de razões. Hoje, uma profissional mulher no Tocantins, casada com um funcionário público, pode encontrar uma oportunidade em outro Estado no LinkedIn ou numa série de plataformas específicas para o trabalho flexível, como Remotar e Workana, por exemplo.
A vantagem é de mão dupla. Um regime flexível permite que as empresas mais focadas em inovação atraiam talentos que, no sistema tradicional, seria impossível. Pode ser a mulher do funcionário público do Tocantins, mas também o jovem do interior do Paraná que não quer deixar a sua cidade; da jovem de Salvador que tem uma bolsa de estudos numa instituição local; de uma gama de talentos que, no passado, não faria parte das equipas em função dos obstáculos da vida de cada um para vencer nossa vastidão geográfica.
Este é o ponto: não podemos desperdiçar a chance que o trabalho remoto oferece. Trata-se de abrir a possibilidade de encontrar pessoas que são tão boas, ou até melhores, que as circunscritas nas proximidades dos escritórios. Nadando na contracorrente dos que estão mandando os seus funcionários de volta às baias, as empresas flexíveis ganham uma vantagem adicional no recrutamento, porque passam a ter à disposição um universo de opções maior do que a concorrência.
Não por acaso, aliás, recrutadores de empresas flexíveis, como Amazon e Microsoft, cresceram os olhos para o pessoal descontente com a política da Tesla. Esse é o outro lado da moeda: empresas mais intransigentes podem desencadear inclusive um êxodo de talentos em todos os níveis. No estudo State of Data 2021, que traz uma radiografia dos profissionais de dados no Brasil no ano que passou, 66,3% dos entrevistados afirmaram que procurariam outra oportunidade se as empresas em que trabalhavam voltassem ao regime presencial integral. A percentagem era ainda maior no nível sénior (74,9%).
Números mais recentes confirmam e ampliam essa tendência para o mercado de trabalho como um todo. Uma pesquisa da consultoria Robert Half mostra que 39% dos entrevistados trocariam de emprego para ter a opção de trabalho em home office. Coincidência ou não, os pedidos de demissão no Brasil têm crescido ao longo do ano, sugerindo uma relação entre a debandada e as exigências de retorno das empresas. E isso mesmo no cenário de retração e de desemprego alto.
O valor da diversidade
O iFood é prova de como um trabalho mais flexível pode propiciar o aproveitamento de maior densidade de talentos – e isso mesmo antes do novo coronavírus chegar. A empresa, que tem colaboradores em todo o Brasil e em alguns países do exterior, entendeu que essa é uma vantagem maior do que, por exemplo, as dificuldades de gestão de tempo, pessoal e produtividade que o home office eventualmente impõe.
A própria diversidade regional é um ativo importante, uma vez que empresas, cada vez mais, precisam fugir dos nichos tradicionais. A compreensão do negócio e do seu potencial junto ao mercado consumidor exige ter visões que reflitam as diferentes realidades. E isso passa necessariamente pela inclusão de fatias que, nos modelos tradicionais de recrutamento, permaneceriam à margem.
Um sistema mais flexível de trabalho é uma das senhas para que as empresas, pequenas ou grandes, repensem a sua própria cultura organizacional e o seu papel na sociedade. Nunca foi sobre não querer trabalhar, e agora, mais ainda, trata-se de escolher entre os desafios que a inovação traz ou aos apelos que carregam uma nostalgia do tempo em que o comando e o controle no ambiente corporativo eram a norma.
Este artigo foi produzido por Diego Barreto, VP de Finanças e Estratégia do iFood e colunista da MIT Technology Review Brasil.