Cada vez mais tecnológicas, as marcas de moda ampliam presença do ambiente digital e estimulam desenvolvimento de novos materiais.
Entre 2021 e o início de 2022, o mundo assistiu deslumbrado à chegada dos NFTs ao mainstream: artes, moda e jogos foram as primeiras indústrias a testar a tokenização das coisas. Mas a financeirização do mundo deu excessivo destaque a uma dentre as inúmeras possibilidades e utilidades de NFTs: o aspecto de ativo financeiro moderno.
Com isso, uma outra revolução, prestes a redefinir a nossa relação com as roupas, seguiu silenciosa no mundo da moda: a inovação tecnológica em produtos físicos através de novos materiais, robótica, nanotecnologia, Internet das Coisas e Inteligência Artificial está — neste exato momento — em ponto de inflexão.
Usarei aqui a expressão Tech Fashion para roupas com “hardware”, e Digital Fashion para a roupas e acessórios puramente digitais ou virtuais. Enquanto o barulho e o hype exaltavam NFTs e Metaversos, a turma dedicada a inovar o hardware das roupas seguiu trabalhando no melhor estilo “industry and frugality”.
Já recarregou o seu casaco hoje?
Pense num cadarço: um recurso medieval para ajustar um calçado ao pé.
Pense numa t-shirt: uma t-shirt de 1940 é praticamente igual a uma de 2022.
Poucos bens de consumo no mundo se mantiveram inalterados por 80 anos.
Num mundo onde empresas de tecnologia já demonstraram a capacidade de capturar mercados alheios, realmente acreditamos que um produto pudesse permanecer o mesmo, impunemente, por quase 100 anos? A Shimano, fabricante de componentes de ciclismo, já produz calçados ajustáveis ao pé através de pequenas roldanas. É uma questão de tempo para que este recurso seja incorporado pelos calçados do dia a dia, com regulagem por um simples toque no seu smartwatch ou por comandos de voz.
A tech fashion começará a entregar, nos próximos anos, tecidos inteligentes, regenerativos e amigáveis ao meio ambiente, fornecendo aos utilizadores dados como locomoção, exposição UV, sinais vitais e interações com jogos, empresas, autoridades e o que mais o utilizador permitir.
Veja o caso da canadiana Hexoskin. A empresa fabrica itens similares a uma camisa esportiva — que também podem ser usados por baixo das roupas do dia a dia — com diversos micro sensores embutidos, monitorando mais de 20 funções do corpo. Os dados gerados vão diretamente para o utilizador, o seu técnico desportivo ou médicos, além de serem dados para o aprimoramento de Inteligência Artificial.
Na tech fashion, produtos terão uma base feita de materiais inteligentes, capazes de mudar de cor e textura via app. Pense, por exemplo, em paletós, gravatas, calças, sapatos. Você poderá ter uma única “base” física destes itens. Cores e texturas serão modificáveis por meio de aplicações, compradas on-line. Assim, a sua “coleção” de ternos poderá ser composta por uma única peça no armário, multiplicada por diversas cores, guardadas no seu perfil na nuvem.
Num mesmo evento, você poderá estar com paletó cinza e minutos depois, marinho. O calçado caramelo, poderá ficar preto. Se isso parece improvável ou distante, basta pensar em quantos CDs ainda temos em casa (zero) e a quantidade de músicas que podemos ouvir com um simples toque numa tela (biliões).
O mesmo conceito e disrupção chegarão ao vestuário.
Haverá, ainda, outra camada fundamental neste jogo: a colaboração. Criadores disponibilizarão novas cores e texturas para as marcas oferecerem ao público, sendo diretamente remunerados, via blockchain, a cada download de suas texturas.
O modelo de produto com base inteligente absorvendo uma camada de cor-textura por download é tão provável, que a BMW apresentou um carro-conceito que muda inteiramente de cor por app, usando uma tecnologia similar à dos e-readers, chamada e-Ink. A grade frontal deste carro tem ainda uma película que se regenera sozinha de arranhões e riscos causados por pedras ou detritos nas ruas.
Voltando à tech fashion, agasalhos terão micro fiações internas feitas de cobre e ouro, promovendo o aquecimento do utilizador sem a necessidade de tantas camadas de tecido.
Roupas e acessórios Pet terão GPS embutidos facilitando, por exemplo, a localização de um Pet perdido.
A marca inglesa Vollebak, por exemplo, vem se a especializar no uso do grafeno nas suas roupas. Trata-se de um material formado por uma camada fina de grafite, com estrutura de átomos de carbono organizada em hexágonos. O material tem sido considerado o mais fino, leve e forte do mundo, com propriedades variando conforme a sua construção: supercondutores, isolantes ou magnéticas.
A mesma Vollebak — que já havia criado um agasalho imune a vírus e bactérias — divulgou recentemente o seu casaco de “camuflagem térmica” desenvolvida com o Instituto Nacional do Grafeno, da Universidade de Manchester. Um conjunto de patches de grafeno é aplicado ao casaco e um pequeno microprocessador recebe o comando que altera a temperatura de cada patch.
Os progrmadores chegaram a brincar de Tetris diante de uma câmera infravermelha fazendo pedaços da casaco desaparecerem. Abre-se o longo caminho para um futuro traje invisível – ao menos diante de câmeras infravermelho.
Já a americana Bolt Threads dedica-se ao desenvolvimento de materiais de base biológica para a indústria da moda, como o couro vegetal Mylo. Criado a partir de fungos, foi usado por Stella McCartney em bolsas e acessórios.
A Bolt patenteou também uma tecnologia de fios sustentáveis inspirada em teias de aranhas. Segundo a empresa, este fio entrega mais resistência, elasticidade e durabilidade, além de ser biodegradável ao fim de sua vida útil.
Na última semana de moda de Paris, a Coperni vestiu a modelo Bella Hadid com um tecido pulverizável, ou melhor, um vestido de tinta. A modelo entrou na passarela seminua, recebeu uma tinta branca em spray sobre o corpo na passarela e, segundos depois, o que era líquido transformou-se em tecido.
O composto é chamado Fabrican, um líquido que contém algodão ou fibras sintéticas misturado a uma solução pomérica, que evapora e torna-se sólida ao tocar o corpo — por isso o nome tecido pulverizável.
Tech Fashion + Digital Fashion: a interoperabilidade que muda o jogo
Junto com os NFTs, o metaverso foi um dos temas mais debatidos e aclamados nos últimos dois anos. Para quem acompanha o assunto, o termo interoperabilidade dominou as discussões sobre o tema, sendo usado para definir a almejada compatibilidade de um item digital entre as diferentes plataformas.
Há, no entanto, outra interoperabilidade a conquistar: aquela entre os itens físicos equipados com tecnologia e os seus pares virtuais. Esta “conversa” entre o físico e o digital poderá ser autônoma ou comandada pelo utilizador. Possuir a versão física e o seu par digital será básico.
Pense em roupas e acessórios que ativam realidades aumentadas em shows, cinemas, museus e parques, amplificando a experiência dos utilizadores. Jogos ou eventos que alteram propriedades do tecido e a capacidade de reação do traje à situação. Roupas que mandam mensagens para autoridades diante de situações de perigo (mapeadas por desacelerações bruscas, quedas ou golpes). Roupas que se modificam diante de uma câmera ou que remuneram o seu utilizador-influencer por aparição, via blockchain. Trajes funcionais para atividades em campo, que vão da medicina ao transporte, passando pela construção civil e segurança.
Ciência e arte
Enquanto a Digital Fashion pôde nascer numa garagem, Tech Fashion depende do conjunto de investimento, pesquisa e estruturas fabris e acadêmicas. No caso de vestuário, a indústria de moda desportiva está um passo à frente da moda comportamental/casual das marcas. Isto porque, assim como nas indústrias aeroespacial, bélica e automobilística desportiva, grande parte das inovações nascem e são testadas em ambientes onde a vantagem competitiva determina objetivamente a utilidade daquela inovação.
Tome como exemplo a Formula-1: os travões ABS, os regeneradores de energia KERS, o design dos pneus de chuva e os motores turbo-alimentados, hoje amplamente usados nos carros de rua, nasceram no ambiente de performance.
Gostemos ou não, a criatividade a serviço da competição é algo poderoso.
Marcas de moda esportiva têm no seu core a criação de artefatos para performance dos atletas, visceralmente ligados à pesquisa e à ciência. A moda das passarelas, por outro lado, entregou muito em inovação estética, fundamental para a criação de valores identitários. Mas se nos últimos 40 anos, marcas de moda montaram os seus produtos com alta dose de arte, estética e muita autonomia em relação à indústria, neste novo cenário em que roupas se transformam em um hardware conectado, a interdisciplinaridade com áreas “exatas” é vital, coisa que as marcas desportivas já nasceram a fazer.
Neste suposto embate, basta andar nas ruas ou shoppings de uma grande capital observando os calçados masculinos: há uma dominância dos sneakers desportivos derivados das corridas, sob o apelo do conforto. Marcas tradicionais de alta-costura perceberam a “invasão” e trataram de montar as suas versões de sapatilhas de corrida.
Tech-Industry and frugality
Muitas das collabs do futuro serão entre marcas e laboratórios de inovação, como no caso de Stella McCartney x Bolt Threads. Ou entre marcas de tech fashion e digital fashion. A Nike liderou o movimento e foi mais longe: em vez de uma collab, adquiriu o célebre RTFKT Studios, responsável por famosas coleções de itens digitais.
Departamentos de estilo deverão interagir com engenheiros, matemáticos, cientistas e programadores e investigadores. Companhias com marca e indústria próprias ganham força neste cenário. Se no século passado a atividade de fabricante era distinta daquela de comerciante, num mundo totalmente conectado fabricantes têm acesso livre ao público e viram comerciantes de varejo.
Este fator (somado à procura por produtos mais tech) obrigará marcas já estabelecidas a criarem vínculos sólidos com pesquisadores e indústria, sob risco de tornarem-se meros licenciantes da sua propriedade intelectual.
Organizações tech que dominaram outros mercados vivem este darwinismo de modo intrínseco: a análise do investimento declarado em pesquisa e desenvolvimento, pelas empresas americanas listadas no S&P 500, confirma a tese: em 2021, as 157 maiores destinaram em conjunto US$ 301 mil milhões à I&D.
Deste total, 38% (US$ 114 mil milhões) vieram do quinteto Google, Meta, Apple, Microsoft e Intel. A Amazon classifica estes esforços em conjunto com outros, sob “tech and content”, com orçamento de US$ 56 bi em 2021.
No Brasil, a Reserva percebeu o cenário disruptivo e montou duas iniciativas estratégicas com outra abordagem para este futuro: a plataforma Reserva INK, onde o público cria lojas usando as bases de produtos prontos da marca.
Com alguma criatividade qualquer pessoa monta a sua loja em minutos: o dono define o preço, sem se preocupar com manutenção do site, fabricação do produto ou entrega ao cliente; fica tudo por conta da INK. Recentemente o grupo criou a Unbrand, plataforma que conecta diretamente a indústria ao cliente final. Imagine um centro comercial digital feito de lojas de fábricas, com curadoria de produtos e atendimento de alto-nível, entregando produtos de alta qualidade por um custo muito competitivo, sem intermediários.
Maratona ou 100 metros rasos?
Mais do que um mercado, há um gigantesco ecossistema a ser criado a partir de roupas tech e as suas as interações com a vida em geral. Geração de valor e protagonismo neste ambiente não serão criados rapidamente, nem por força-tarefa ou numa garagem.
A popular “criatividade” do jeitinho brasileiro ajuda muito, mas também não ganha este jogo.
É virtude ligeira, baseada em adaptação e improviso. A criatividade que ganha o jogo da inovação em tecnologia é metódica, antecipada, fundada em talentos, pesquisa, tecnologia, estrutura e visão.
Os donos dos produtos vencedores de 2027 começaram a desenhá-los agora. E vão dividir os royalties via blockchain.
Pedro Cardoso é colunista da MIT Technology Review Brasil