Por volta de 1801, o matemático, astrônomo e físico Carl Friedrich Gauss improvisou a utilização de métodos numéricos em um trabalho de observação astronômica. Gauss queria encontrar uma estimativa para a órbita de um asteroide, mas as informações visuais que tinha à disposição eram insuficientes, visto que apresentavam muitas incoerências. O pesquisador decidiu então catalogar dados observacionais e, a partir daí, desenvolveu sistematicamente métodos de cálculo de órbitas, incluindo a teoria de uso de quadrados mínimos.
Basicamente, Gauss identificou que confiar em um único ponto de observação para determinar uma estimativa completa não seria suficiente. Mas utilizar os dados já obtidos por ele e outros pesquisadores em conjunto com a lógica matemática era um caminho mais assertivo. E de fato foi. A teoria, que ficou conhecida como “Método de Mínimos Quadrados”, permitiu a Gauss extrair informações significativas dos dados observacionais e estimar com mais precisão a órbita do asteroide Ceres, um dos maiores e mais massivos já observados.
Mas o que isso tem a ver com análise de dados? A verdade é que este talvez seja um dos primeiros exemplos que se tem notícia sobre o uso prático do que hoje conhecemos como inteligência de dados.
É claro que, de lá para cá, muita coisa mudou. Pode-se afirmar que a fundação para a inteligência de dados moderna começou a ser realmente estabelecida com o surgimento da computação e da análise estatística avançada no século XX. Mas novas tecnologias que surgem ano a ano, como a computação em nuvem, Big Data, machine learning, Inteligência Artificial (IA) e outras, ajudam a impulsionar essa área.
Além de aprender a lidar com um alto volume de informações, as empresas precisaram (e ainda precisam) investir em sistemas de armazenamento escaláveis, na adoção de algoritmos de aprendizado de máquina, em Inteligência Artificial para análises avançadas e na implementação de ferramentas de visualização de dados. Pablo Pilon, diretor de vendas da Adobe Brasil, pontuou, ao falar sobre o assunto, outro aspecto relevante dentro desse cenário: a mudança no comportamento do consumidor.
Nos últimos 20 anos, todos nós, enquanto consumidores, adotamos diferentes canais digitais (sites, e-commerce, redes sociais, marketplaces, chatbots, wearables, quiosques de autosserviço) para nos relacionar com as marcas. O problema é que cada canal acaba exigindo uma camada de personalização, visto que apresentam formatos e linguagens diferentes. Nas redes sociais, por exemplo, é possível utilizar uma linguagem mais coloquial e bem-humorada (dentro da medida) que não seria tão adequada em uma plataforma de e-commerce.
O papel da tecnologia nas estratégias de hiperpersonalização
A IA e o machine learning atuam como aliadas na hora de adequar a comunicação para diferentes canais, visto que auxiliam na automação de tarefas mecânicas e repetitivas. Um exemplo são os profissionais de marketing que, com o auxílio dessas tecnologias, ganham a capacidade de criar múltiplas peças de conteúdo para diferentes canais de maneira adaptada e otimizada. Assim, podem ter à sua disposição peças adequadas às necessidades dos clientes e que respeitem o momento do ciclo de vida de cada um (descoberta, engajamento, conversão/relação e retenção).
“Para tal atividade, tecnologias com IA e machine learning apoiam, e muito, na criação de conteúdos, sejam textos, imagens ou vídeos em grandes escalas, possibilitando a comunicação ser mais assertiva (visão empresa) e mais relevante (visão cliente). Esse mesmo contexto se aplica a muitas outras profissões: contadores, profissionais da área de saúde, professores, enfim, todas as áreas nas quais existam tarefas repetitivas”, destacou Pilon.
Essa automação é possível graças ao desenvolvimento tecnológico, especialmente a computação em nuvem, caminho este pavimentado por grandes empresas de tecnologia, como Amazon, Microsoft, IBM e até mesmo a chinesa Alibaba. Com o ganho em escala e, por que não dizer, a “democratização” do poder computacional, as empresas passaram a ter mais condições de investir em tecnologias que as auxiliam na captura e armazenamento de uma quantidade massiva de informação dos seus clientes e prospectos, e podem transformar esses dados capturados em conhecimento.
A convergência dessas tecnologias, ou seja, a união de ambos os recursos — desenvolvidos inicialmente para fins distintos — na criação de soluções mais avançadas e versáteis, eleva ainda mais as expectativas para criação de experiências ainda mais personalizadas. “Precisamos entender que os anos de 2020 e 2021 pressionaram praticamente todas as empresas a desenvolverem algum tipo de atendimento/venda em canais digitais. As empresas que ainda não operavam no digital se viram forçadas a entrar, de alguma maneira, nesse ambiente. As empresas médias e grandes, que já tinham algum tipo de presença digital, tiveram que fortalecer e maximizar seu alcance em novos canais para manter suas relativas fatias de mercado”, destacou Pablo Pilon.
No entanto, todo esse processo trouxe consigo um importante desafio: a necessidade de entender como orquestrar essas jornadas que o consumidor tem no mundo digital e tecnológico. Em resumo, as empresas precisam entender o quanto antes que o mesmo cliente pode estar presente em múltiplos canais — e quer ter a melhor experiência em todos eles — e a análise de dados é o caminho para entender como transformar as informações obtidas em inteligência para manter a sustentabilidade e competitividade dos negócios.
A estratégia da VR para se aproximar de seus consumidores
Para ilustrar melhor a questão, pense no caso de uma prestadora de serviços, como a VR, que atende mais de quatro milhões de trabalhadores e 85 mil empregadores atualmente. A empresa que iniciou sua trajetória oferecendo benefícios de alimentação e refeição, em mais de 45 anos de história expandiu sua atuação para disponibilizar soluções em mobilidade e gerenciamento de capital humano.
Durante esse tempo de atuação no mercado, a VR entendeu que o melhor caminho para garantir a fidelização de seus clientes é por meio da satisfação, confiança e segurança nos serviços oferecidos. É dessa maneira que se estabelece uma relação de longo prazo entre marca e consumidor.
Por isso, o foco da VR é em personalização, garantindo que cada cliente seja atendido pelo canal que desejar, da maneira adequada, e, principalmente, que tenha sua necessidade atendida. “Adotamos uma arquitetura omnichannel (sistema integrado que permite uma experiência de compra consistente e contínua em diferentes canais de venda). Atitudes como essa fazem com que a redução do churn (diminuição da perda de clientes) aconteça naturalmente e como uma consequência do trabalho que tem o cliente como o centro do modelo de negócio”, disse Renato Teixeira, diretor-executivo de plataformas da VR.
Teixeira explicou que um ponto importante para retenção de clientes é a diversificação do portfólio da empresa alinhado à tecnologia. A expansão da VR é um exemplo que pode se estender a diferentes tipos de mercados. No entanto, é fundamental que um dos principais pontos de atuação seja mapear aquilo que o seu cliente precisa, mas ter a tecnologia e as inovações como aliadas no processo de implementação de melhorias.
No caso da VR, a empresa investe em uma plataforma de dados e hiperautomação, para manter suas informações sempre atualizadas. Tecnologias, como a Inteligência Artificial e machine learning entram no processo como uma forma de prever o comportamento do cliente, mapeando o uso das ferramentas disponibilizadas aos consumidores, para que seja possível visualizar qual será o próximo passo de cada cliente. “Dessa forma, conseguimos levantar informações como os riscos de um possível churn ou as possibilidades de que esse cliente adquira um novo produto. Essas informações são fundamentais para a excelência do nosso atendimento”, destacou o diretor-executivo da empresa.
Outro uso estratégico da tecnologia também envolve a adoção de plataformas que se retroalimentam para o desenho de roadmaps alinhados às tendências e boas práticas de mercado. Dessa forma, a empresa tem condições de criar bases sólidas para tomadas de decisão mais assertivas e também ganha maior capacidade de se adaptar ao que o mercado exige.
“Os pilares principais são garantir que haja uma fundação com plena capacidade de absorver os altos volumes de dados e transações que existem dentro do nosso negócio e, sempre que necessário, converter toda essa base em inovação.”
Nível de maturidade das empresas ainda precisa avançar
Em termos de maturidade das empresas para lidar com essas questões, principalmente no mercado latino-americano, Pilon avaliou que alguns setores já estão mais avançados na discussão, como o financeiro e varejo. Em contrapartida, setores como o de saúde e transporte/distribuição estão aumentando significativamente seus índices de maturidade para tratar o tema, mas ainda há um caminho a ser percorrido.
Especificamente no caso dessas empresas em que a análise de dados ainda não pode ser considerada um pilar estratégico dos negócios, o que falta, na opinião do executivo da Adobe, é uma reorganização na estrutura das organizações.
“Praticamente todas as médias e grandes empresas hoje falam em estratégias para colocar o cliente no centro de tudo. Entretanto, essas mesmas organizações têm a sua alta gestão e seus KPIs (bônus, vendas, retenção) agrupadas por produtos, o que naturalmente cria uma estrutura de ‘competição’ pela atenção do cliente entre produtos da mesma empresa. Logo, uma estratégica verdadeiramente centrada no cliente pode implicar em reorganização estrutural das empresas que estejam realmente dispostas a centrar suas ações em seus clientes.”
Em outras palavras, Pilon destacou que a experiência que uma empresa provê aos seus clientes é um dos principais fatores de geração de vantagem competitiva no mercado. E uma vantagem, vale pontuar, sustentável ao longo do tempo. Além disso, com um mundo cada vez mais digital, as empresas que desejam se destacar em seus campos de atuação precisam investir na expansão de experiências digitais contextualizadas, relevantes e inteligentes para seus clientes. Ou seja, experiências hiperpersonalizadas.
Este artigo foi publicado na MIT Technology Review Brasil.