As grandes transformações que se têm vindo a verificar, tanto na sociedade como nas organizações, profundamente influenciadas pelos avanços da tecnologia, têm vindo a provocar uma reconcepção profunda sobre a natureza do trabalho e sobre a real importância da inteligência humana enquanto fator essencial para a produtividade e para o sucesso das organizações.
Em total rutura com as perspetivas tradicionais herdadas da Segunda Revolução Industrial, os trabalhadores e empregados de hoje procuram, no trabalho, muito mais do que uma simples resposta às suas necessidades fundamentais de sustento e de sobrevivência que, atendendo aos grandes progressos económicos e sociais registados nas últimas décadas, nas sociedades mais desenvolvidas, deixaram de ter o significado e o impacto que tiveram em épocas anteriores.
As motivações que ligavam as pessoas às organizações evoluíram de uma pura lógica de procura de satisfação de necessidades mais básicas para a aspiração de encontrar, no trabalho, mais do que um simples meio de ganhar a vida, um espaço de realização pessoal plena, só possível através de uma integração coerente entre as dimensões profissional e pessoal.
Esta natural aspiração a uma melhor potenciação das capacidades mais profundas, e, por vezes, menos conhecidas, do ser humano no trabalho, corresponde a uma fase de desenvolvimento em que as organizações atuam em ecossistemas sociais e de mercado muito mais complexos e ambíguos, onde a inovação assume uma cada vez maior importância enquanto fator crucial para a competitividade e para a sustentabilidade futura.
E para criar ambientes organizacionais que favoreçam e estimulem a inovação, as organizações devem dinamizar uma cultura de envolvimento e de compromisso com os colaboradores, através da promoção de práticas de Liderança Ambidestra, exercida por líderes que, mais do que tolerar a ambiguidade, se sintam atraídos por ela e de Liderança Multiplicadora onde, para além de criar e liderar equipas de alta performance, deixem um legado para o futuro, contribuindo ativamente para o florescimento de novos líderes.
INOVAÇÃO E ECOSISTEMAS ORGANIZACIONAIS
Apesar de vivermos atualmente num mundo onde a inovação é já considerada por muitos como uma verdadeira estratégia de sobrevivência, em contextos em que o apetite de novidade dos clientes se tornou num dos principais agentes propulsores do consumo, a importância da inovação e a sua relevância nos negócios já foi expressivamente assinalada, na década de 90, por James Moore, ao afirmar que “in a fast-moving company, the status quo is clearly doomed, and innovation wins” (Moore, 1996).
As estratégias organizacionais orientadas para a inovação, para além das evidentes consequências positivas no desenho dos produtos e serviços, possibilitando uma melhor resposta às necessidades e expectativas dos consumidores, criam, de acordo com o mesmo autor, um novo tipo de ecossistemas de negócio pelo facto de que “Innovation usualy requires that other organizations evolve their products and services in concert with us”, concluindo por uma prescrição concreta às organizações, que altera substancialmente as dinâmicas do jogo competitivo: “You must convince others to dream with you and work at your side” (op.cit.).
Enquanto que, em modelos estratégicos anteriores, designadamente os propostos pela corrente neoliberal de Michael Porter (1998) as organizações eram concebidas como entidades que se confrontavam sozinhas num ambiente ferozmente competitivo, no qual cada operador de mercado procurava diferenciar-se dos seus concorrentes, obtendo para si “vantagens competitivas” que lhe garantiriam a perenidade no mercado e o sucesso nos negócios, o modelo apresentado por Moore dá-nos uma perspetiva completamente diferente, segundo a qual uma organização progride no mercado através de estratégias de “coevolution”, de acordo com as quais “what you do is not as importante as how your capabilities relate to what others are doing” (Moore, op.cit.).
De acordo com esta perspetiva, as estratégias de inovação não só contribuem para a criação de novos e melhores produtos e serviços, que vão contribuindo para a melhoria da qualidade de vida das populações de consumidores, como vão também instituindo nas organizações novas modalidades mais colaborativas de organização do trabalho e de estabelecimento de redes de cooperação entre diferentes entidades, estruturas e pessoas, transpondo para a realidade interna das organizações uma asserção que marca novos rumos para o desenho de uma cultura organizacional mais integrativa: a de que “a great deal of leadership and business strategy relies on creating shared meaning, which, in turn, shapes the future” (Moore, op.cit.).
A CRIAÇÃO DE SIGNIFICADOS PARTILHADOS
A criação de significados partilhados, referida por Moore, não surge apenas como “mais uma perspetiva”, ou “mais um” modelo e muito menos como “mais uma” das chamadas “modas da gestão”. De acordo com a reflexão que temos vindo a propor, surge sim como um novo imperativo de uma liderança realmente orientada para a inovação.
Este imperativo convoca, inevitavelmente, uma nova forma de olhar a relação entre operadores de mercado e entre líderes e liderados que, no limite, conduz a uma nova conceção sobre o exercício do poder e das próprias modalidades de distribuição desse poder.
Hoje, na era da revolução digital e da Inteligência Artificial e num mundo muito menos espartilhado em feudos sociológicos ou económicos referenciados apenas a si próprios, assistimos e participamos neste processo de profunda transformação dos “business models” e, por extensão, dos “leadership models” assentes, como é muito expressivamente assinalado na edição especial de Verão de 2021 da HBR, numa nova perspetiva sobre o que é a competição, segundo a qual “competir é identificar, de modo crescente, novas formas de colaboração e de conexão em vez de simplesmente oferecer ao mercado propostas de valor alternativas”.
Se estas são as novas orientações relativamente aos modos de “fazer negócio”, é natural que as empresas e as organizações tenham uma cada vez maior necessidade de gerar e incentivar novas dinâmicas em liderança das pessoas e das equipas, muito mais orientadas para a valorização dos genuínos contributos humanos que, na verdade, só poderão ser plenamente exponenciados quando essas pessoas sentirem que o campo de desenvolvimento da empresa constitui parte integrante do seu próprio campo de desenvolvimento como indivíduos; quando as pessoas sentirem de facto alinhamento entre os Propósitos das organizações e o seu Propósito de vida, como pessoas.
Assim, se a inovação passa a tornar-se a principal orientação estratégica das empresas, ela só poderá ser verdadeiramente concretizada se houver, entretanto, também inovação nas formas de liderar as pessoas.
Sustentamos, por isso, que uma maior humanização do trabalho e uma efetiva valorização dos genuínos contributos humanos, que são o resultado da própria evolução das sociedades ocidentais e democráticas, têm hoje uma tão significativa adesão porque se demonstra, pela prática, que, como referem Goleman et.al. (2002), de forma mais simples e prosaica, “when people feel good, they work at their best.”
DA NECESSIDADE DE NOVOS LÍDERES
A eficácia de um líder não se mede tanto pelos resultados que ele (ou ela) consegue obter individualmente, mas mais pelo “impact that these leaders have on others” (Wiseman, 2017).
E o grande desafio atual de um líder, no contexto sócio organizacional anteriormente traçado, e em total rutura com alguns dos modelos mais tradicionais de liderança, não é ser “the smartest person in the room” (op. cit.), mas alguém que “brings a sense of purpose to an organization” (Bowman & Bowman, 2005).
O “sentido de propósito”, se e quando interiorizado e assumido por um coletivo de pessoas, dá corpo e substância á existência de significados partilhados através do reforço dos laços de cooperação e do estabelecimento de verdadeiras redes de sinergia dentro das organizações. E a sinergia constitui um adubo fértil para a potenciação de culturas organizacionais orientadas para a inovação.
A criação deste tipo de culturas não é já compaginável nem com estruturas hierárquicas rígidas nem com as famosas formas de organização, ou pelo menos de funcionamento, bem conhecidas por “silos”.
Neste tipo de configurações, em que diferentes estruturas de uma mesma organização funcionam em sistemas autorreferenciados e em que cada área e, por extensão, cada pessoa, agem como se a sua área fosse independente da empresa como um todo, o que é muitas vezes estimulado, em vez de do estabelecimento de laços de cooperação na base de interesses mútuos, é uma rivalidade, muitas vezes exacerbada, entre estruturas e entre pessoas, que coarta a iniciativa e limita drasticamente o estabelecimento de lógicas de coevolução.
Alguns defenderão que, em vez de limitar, este modo de funcionamento estimula muito mais a inovação do que um ambiente em que se valoriza a equipa e a cooperação entre pares, no pressuposto de que o individualismo e a competitividade agressiva vão levar as pessoas a, alegadamente, procurarem sempre alcançar os melhores novos resultados.
No entanto, os climas organizacionais caracterizados por um excesso de individualismo e pela estimulação de uma competitividade inter individual fortemente agressiva, podem sempre conduzir ao risco da criação de ambientes tóxicos em que cada pessoa se sente acossada por emoções primárias de medo e autodefesa que, naturalmente, coartam a criatividade e constituem barreiras sólidas contra a possibilidade do estabelecimento de sinergias.
Em tais condições, a perceção do sucesso de uns é muitas vezes aferida pela perceção do insucesso de outros e a energia criativa de cada um é sempre condicionada pela comparação permanente com os outros e limitada por relações de rivalidade tóxica.
Assim, a procura pelos “melhores resultados” pode ser fortemente influenciada por um processo de “mistificação” dos indicadores que são usados para os medir, em que o peso e a importância dos indicadores objetivos são suplantados pelo peso e importância atribuídos a um único e muito difuso indicador subjetivo: o de ser, simplesmente, melhor do que os outros que servem como termo de comparação.
Mas quando alguém afere o seu resultado pela comparação com outrem, é preciso prestar atenção relativamente aos termos de comparação utilizados: se por exemplo, um indivíduo se comparar com um “rival”, e esse “rival” tiver apenas resultados medíocres, o único fator diferenciador poderá limitar-se a um ser “menos medíocre” do que o outro, o que, convenhamos, será sempre uma vitória limitada e muito pouco gloriosa.
Por isso, se quisermos de facto inovar nos negócios, é essencial promovermos ambientes organizacionais ágeis e flexíveis, nos quais os líderes, em vez de reduzirem a inteligência e a criatividade dos seus colaboradores, sejam, pelo contrário, “criadores de génios” (Wiseman, 2017), colocando a pessoa, os seus talentos e a sua capacidade de se reinventar, como centro, como o verdadeiro “core”, das estratégias de inovação.
Este artigo foi escrito por Mário Ceitil, Professor convidado no ISCTE e Presidente da Mesa da Assembleia Geral da APG (Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas).