As profundas alterações no nosso tecido económico e social, provocadas pelos desenvolvimentos tecnológicos a um ritmo acelerado, estão a provocar uma reconcepção profunda sobre a natureza do trabalho e sobre a real importância da inteligência humana enquanto fator essencial para a produtividade e para o sucesso das organizações.
E um dos elementos essenciais dessa reconcepção é justamente a reinvenção do poder da inteligência humana como força motriz do progresso das organizações.
Se os “tempos modernos” da Revolução Industrial dos finais do século XIX e princípios do século XX instituíram o principio do trabalho simples, parcelarizado e rotineiro como a base da produtividade, reduzindo ao mínimo as capacidades criativas e a inteligência dos trabalhadores, podemos afirmar com segurança que vivemos hoje os antípodas dessa realidade, com empresas e organizações que, em vez de agirem como “genius destroyers” (Wiseman, 2017) aniquilando o potencial e a iniciativa das pessoas, criam ambientes e lideranças que atuam como “genius creators” (id.) ou seja, agentes ativos no processo de evocação do melhor que existe em cada um.
Ora, em contextos sociais e empresariais onde a criatividade e a capacidade de inovar constituem condições essenciais para garantir o sucesso, a sustentabilidade e a perenidade das empresas, a promoção de novas estratégias de liderança, que libertem de facto a inteligência humana e a sua capacidade de reinvenção, já não é redutível à “mera” condição de uma necessidade: passou a tornar-se uma verdadeira imperatividade.
Mas a criatividade e a inovação, sendo embora realidades próximas e complementares, são, todavia, diferentes.
A criatividade alimenta-se de inesperado, da aventura de libertar o pensamento para horizontes ainda não explorados. Nesse sentido, a criatividade é essencialmente um exercício mental de pensamento divergente, sem as barreiras do compromisso com o pragmatismo nem as limitações apriorísticas do “não pode ser”.
A inovação, ao contrário, já não é só um exercício mental, mas um processo que se constrói laboriosamente através de fases rigorosamente programadas.
A criatividade produz ideias; a inovação ocupa-se da materialização de algumas delas.
Esta diferença entre as duas categorias, muitas vezes descurada, tem muitas evidências no facto de haver tendencialmente muito mais indivíduos criativos sem a capacidade empreendedora para pôr as suas ideias em prática, do que pessoas criativas que conseguem de facto perenizar as suas boas ideias em realidades que contribuem para melhorar a vida dos cidadãos e das comunidades.
De forma semelhante, na gestão sempre foram conhecidas as tradicionais dicotomias entre “os que pensam” e “os que executam”, entre os que dão as ideias e os que as põem em prática, entre os que têm uma visão mais holística e os que estão mais orientados para aspetos mais concretos da realidade.
Ora, as circunstâncias específicas da vida empresarial dos nossos dias convocam a necessidade de termos, nas nossas organizações, líderes “não dicotómicos”, pessoas que, nas suas práticas e ações enquanto líderes, sejam de facto capazes de ultrapassar o discurso adversativo do “ou -ou” e promovam, em si e nos seus colaboradores, modos de pensamento e competências para potenciar práticas integrativas e complementares de “e-e”.
Líderes que sejam visionários e, ao mesmo tempo, capazes de garantir a execução prática das suas visões, líderes que sejam irreverentes e, ao mesmo tempo, comprometidos com o cumprimento de regras e preceitos fundamentais, líderes que saibam combinar a visão global com as realidades do “dia-a-dia”, líderes, em suma, que tenham uma grande competência em integrar a “razão” e a “emoção” de modo a terem uma perceção muito mais completa das realidades que os cercam.
Tais líderes praticam aquilo que tem vindo a ser designado por “Liderança Ambidestra”, designação que recupera o conceito de ambidestreza aplicado ao tipo de pessoas que são capazes de utilizar ambas as mãos com a mesma habilidade.
Em contexto organizacional, e de acordo com Gibson e Birkinshaw (2004), citados por Jung Marques, M.A. & Castro de A. Cunha, C. (2018), a ambidestria, assim designada para se distinguir da ambidestreza respeitante à dimensão puramente individual, é a “capacidade de alcançar simultaneamente alinhamento e adaptação”, através da combinação de dois tipos de comportamentos que, tradicionalmente, eram considerados opostos e dificilmente reunidos na mesma pessoa: os comportamentos de “exploração” (exploration) e os comportamentos de “explotação” (exploitation). De acordo com James March (1991), citado por Jung Marques, M.A. & Castro de A. Cunha, C. (2018), o comportamento de “exploração” (exploration)” refere-se a estratégias novas ou ainda não conhecidas”, e o comportamento de “explotação” (explotiation) “refere-se à especialização das atividades desencadeando um incremento nos resultados por meio da utilização do conhecimento existente”.
A combinação num mesmo líder desta capacidade de integrar dimensões diferentes e consideradas durante muito tempo como quase opostas, constitui hoje uma das mais importantes “power skills” do reportório de competências requeridas para um líder perante uma conjuntura económica e social extremamente instável e volátil, para além de constituir também um sólido preditor para uma maior eficácia nas lideranças orientadas para a inovação, designadamente pelo facto de estimular, em simultâneo, o pensamento complexo e o pensamento crítico e seguramente uma maior flexibilidade cognitiva por parte dos colaboradores.
De facto, como referem Jung Marques, M.A. & Castro de A. Cunha, C. (2018),” a teoria da liderança ambidestra propõe que a alternância entre os comportamentos de abertura e de fechamento dos líderes tem impacto positivo nos comportamentos de exploração e de explotação dos liderados, ou seja, o desempenho inovador dos liderados é mais alto quando existe uma maior alternância entre os comportamentos de exploração e explotação por parte dos líderes”.
Se o valor do exemplo constitui hoje um sólido fator da ascendência da liderança, a ambidestria dos líderes constituirá um poderoso estímulo para a criação de uma organização mais ágil, com uma maior capacidade de intervenção no quotidiano, mas seguramente muito mais bem apetrechada para enfrentar com sucesso, a prova do futuro.
NOVOS DESÍGNIOS DA LIDERANÇA: A “LIDERANÇA MULTIPLICADORA”.
Para além da “ambidestria” dos líderes, essa capacidade, como salientámos anteriormente, de integrar dimensões diferentes e consideradas durante muito tempo como quase opostas, a indispensável promoção de um maior envolvimento e compromisso por parte dos colaboradores, exige uma efetiva ação dos líderes orientada para a libertação do potencial e da inteligência dos colaboradores.
Os líderes que assim procedem, são designados por Wiseman como os “multiplicadores” (multipliers), ou seja, pessoas que aplicam “their intelligence to amplify the smarts of people around them” (op.cit.) e distinguem-se claramente de outro tipo de líderes, os “diminishers” (redutores) que, em vez de agirem de modo a exponenciar o potencial dos seus colaboradores e evocar o melhor que neles existe, estão “tão absorvidos com a sua própria inteligência” (id.) que “secam” os reservatórios de energia disponíveis das pessoas que os rodeiam, criando ciclos de declínio de talento que, no mínimo, semeiam a desmotivação e o alheamento à sua volta.
Como acontece com qualquer outra realidade humana, esta tipologia de liderança não obedece nem a maniqueísmos dogmáticos, separando rigidamente os “bons” e os “maus”, nem sequer admite qualquer juízo apriorístico sobre o conceito, sempre equívoco, de “natureza humana”.
Por isso, é sempre prematuro e pouco rigoroso designar um líder como “multiplicador” ou “redutor” em abstrato, mas é possível classificar determinadas ações desse líder como “multiplicadoras” ou “redutoras” em função dos comportamentos observados e dos seus efeitos sobre os liderados.
Assim, e tal como acontece com a anteriormente analisada “ambidestria” dos líderes, a desejável ação “multiplicadora” não depende de possíveis características intrínsecas da personalidade dos líderes, mas é sempre resultado de processos de tomadas de decisão conscientes dos líderes que, nas suas organizações, decidem quais as estratégias de liderança que melhor se adequarão aos seus contextos específicos e naturalmente às suas próprias idiossincrasias pessoais.
E pela breve caracterização aqui apresentada, sustentamos que lideranças “ambidestras” e “multiplicadoras” apresentam um elevado potencial para a criação de ambientes organizacionais em que cada um possa libertar plenamente a sua inteligência criadora, o que é uma condição essencial para a criação de ambientes de inovação.
Uma liderança através da qual cada líder atue como um “talent magnet”(ibidem), ou seja alguém que consiga atrair a si colaboradores que, mais do que serem as “best people”, se sintam encorajados, atraídos e comprometidos com encontrar o “best in people” de si mesmos;
Uma liderança “libertadora” (ibidem) suscetível de criar um “ambiente intenso que estimule o “best thinking e o best work” de cada pessoa, em vez de criar um ambiente “tenso”, “dominando o espaço, gerando ansiedade e julgando os outros” (op.cit) de forma discriminativa e arbitrária.
A combinação destes dois tipos de liderança, Ambidestra e Multiplicadora será então o desafio fundamental para as organizações que pretendam implementar estratégias coerentes, continuadas e sustentadas de inovação.
Nos contextos turbulentos da pós-modernidade, onde a erosão das certezas gera a perplexidade do presente e a ansiedade do que está para vir, os líderes confrontam-se com um desafio maior: “uma mudança do controlo para a confiança, do medo para a verdade, do privilégio para a equidade e da fragmentação para a unidade” (Bowman & Bowman (2014).
CONCLUSÃO
A inovação, como processo com sustentabilidade, exige muito trabalho de equipa e a existências de ambientes que estimulem a criatividade, essa capacidade de, como refere Moore (1996) “sonhar”” com outros.
Por isso, mais do que alguém que “atinge resultados através de outros”, como propõe uma das mais clássicas definições de liderança, nas novas realidades do mundo moderno, onde “as relações hierárquicas vão ficar esbatidas por vínculos menos fortes e uma mobilidade acelerada” (Fortes da Costa, 2023”) os novos líderes devem ser “inspiradores de equipas e mentores dos seus colaboradores, tendo de ser os guardiões da visão de conjunto do feedback constante de múltiplos beneficiários do trabalho dos membros da sua equipa” (op.cit).
Esta é hoje uma condição fundamental para “transformar a arte de liderança na ciência dos resultados” (Goleman et.al, 2002).
E só com estes novos líderes se consegue, com sustentabilidade, criar verdadeiramente “empresas à prova do futuro” (Roose, 2021).
Este artigo foi escrito por Mário Ceitil, Professor convidado no ISCTE e Presidente da Mesa da Assembleia Geral da APG (Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas).