No arquipélago de Zanzibar, na Tanzânia, os agricultores rurais estão a usar uma aplicação assistida por IA, chamada Nuru, que funciona na sua língua nativa, o suaíli, para detetar uma doença devastadora da mandioca antes que esta se espalhe. Na África do Sul, cientistas de computação criaram modelos de aprendizagem automática para analisar o impacto da segregação racial na habitação. E em Nairobi, no Quénia, a IA classifica imagens de milhares de câmaras de vigilância instaladas em postes de luz no movimentado centro da cidade.
O benefício projetado da adoção de IA na economia de África é tentador. As estimativas sugerem que quatro países africanos por si só (Nigéria, Gana, Quénia e África do Sul) poderiam acumular até 136 biliões de dólares americanos em benefícios económicos até 2030 se as empresas desses países começarem a utilizar mais ferramentas de IA.
Agora, a União Africana (UA), composta por 55 países membros, está a preparar uma política ambiciosa de IA que prevê um caminho centrado em África para o desenvolvimento e a regulamentação dessa tecnologia emergente. Mas os debates acerca de quando a regulamentação da IA é justificada e as preocupações com a repressão da inovação podem representar um obstáculo, ao mesmo tempo que a falta de infraestrutura de IA pode atrasar a adoção da tecnologia.
“Estamos a observar um crescimento da IA no continente; é realmente importante que haja regras definidas para governar essas tecnologias”, diz Chinasa T. Okolo, membro do Center for Technology Innovation da Brookings Institution, cuja pesquisa se foca na regulamentação da IA e no desenvolvimento de políticas em África.
Alguns países africanos já começaram a formular as suas próprias estruturas legais e políticas para a IA. Sete desenvolveram políticas e estratégias nacionais de IA, as quais estão atualmente em diferentes estágios de implementação.
A 29 de fevereiro, a Agência de Desenvolvimento da União Africana publicou um esboço regulamentar que estabelece um plano de regulamentações de IA para as nações africanas. O esboço inclui recomendações para códigos e práticas específicas do setor, padrões e órgãos de certificação para avaliar e comparar sistemas de IA, ambientes de testagem da regulamentação para testes seguros de IA, e o estabelecimento de conselhos nacionais de IA para supervisionar e monitorizar a sua implementação responsável.
Espera-se que os chefes dos governos africanos acabem por aprovar a estratégia continental de IA, mas apenas em fevereiro de 2025, quando se reunirem na próxima cimeira anual da UA em Adis Abeba, na Etiópia. Os países que não tiverem políticas ou regulamentações de IA em vigor irão utilizar esse plano para desenvolver as suas próprias estratégias nacionais, enquanto os que já tiverem criado as suas serão incentivados a rever e alinhá-las com as da UA.
Noutros lugares, leis e políticas importantes de IA também estão a ganhar forma. A União Europeia (UE) aprovou o Regulamento da Inteligência Artificial em março, destinado a tornar-se a primeira lei de IA abrangente do mundo; em outubro do ano passado, os Estados Unidos emitiram um decreto sobre IA; e o governo chinês está a planear uma lei de IA abrangente semelhante à da UE, ao mesmo tempo que estabelece regras para produtos específicos de IA à medida que são desenvolvidos.
Se os países africanos não desenvolverem estruturas regulatórias próprias que protejam os cidadãos do uso indevido da tecnologia, alguns especialistas temem que a população africana possa enfrentar danos sociais, incluindo preconceitos que possam agravar as desigualdades. E se esses países também não encontrarem uma maneira de aproveitar os benefícios da IA, outros temem que essas economias possam ser deixadas para trás.
“Queremos criar normas”
Alguns investigadores africanos acham que é muito cedo para pensar na regulamentação da IA. O setor ainda está numa fase inicial em África devido ao alto custo de construção da infraestrutura de dados, ao acesso limitado à Internet, à falta de financiamento, e à escassez de computadores potentes necessários para treinar modelos de IA. A falta de acesso a dados de treino de qualidade também é um problema. Os dados africanos estão em grande parte concentrados nas mãos de empresas fora de África.
Em fevereiro, pouco antes da publicação do esboço regulamentar de IA da UA, Shikoh Gitau, uma cientista de computação que fundou o laboratório de pesquisa de IA Qubit Hub em Nairóbi, publicou um artigo onde argumentava que a África devia priorizar o desenvolvimento de um setor de IA antes de tentar regulamentar a tecnologia.
“Se começarmos a regulamentar, não iremos descobrir as inovações e oportunidades que existem para África”, diz David Lemayian, engenheiro de software e um dos coautores do artigo.
Chinasa, que foi consultada acerca do esboço regulamentar da AU, discorda. A África deve ser proativa no desenvolvimento de regulamentações, diz Chinasa. Ela sugere que os países africanos reformem leis existentes, como as políticas sobre a privacidade de dados e a governação eletrónica, para abordar a IA.
Mas Shikoh teme que uma abordagem precipitada à regulamentação de IA possa impedir a adoção da tecnologia. Ela acrescenta que é fundamental criar uma IA doméstica com utilizações adaptadas para que os africanos aproveitem o poder da IA para melhorar o crescimento económico.
“Antes de criarmos regulamentos, precisamos de ter o trabalho árduo de compreender todo o espetro da tecnologia e investir na construção do ecossistema de IA africano”, diz ela.
Mais de 50 países e a UE têm estratégias de IA em vigor, e mais de 700 iniciativas de políticas de IA foram implementadas desde 2017, de acordo com o AI Policy Observatory da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económicos (OCDE). No entanto, apenas cinco dessas iniciativas são de África e nenhum dos 38 países membros da OCDE é africano.
As vozes e perspetivas de África têm estado amplamente ausentes das discussões globais sobre a governação e regulamentação de IA, diz Melody Musoni, especialista em políticas e governação eletrónica do European Centre for Development Policy Management (ECDPM), um laboratório de ideias independente em Bruxelas.
“Temos de contribuir com as nossas perspetivas e de possuir as nossas estruturas regulatórias”, diz Melody. “Queremos criar normas em vez de escolher quais seguir.”
Nyalleng Moorosi, uma especialista em ética e justiça na aprendizagem automática que mora em Hlotse, no Lesoto, e trabalha no Distributed AI Research Institute, diz que alguns países africanos já estão a sofrer exploração de mão de obra por parte de empresas de IA. A exploração inclui salários baixos e falta de apoio psicológico para os trabalhadores encarregados da etiquetagem de dados, que são, na sua maioria, provenientes de países economicamente desfavorecidos, mas que trabalham para grandes empresas de tecnologia. Nyalleng argumenta que a regulamentação é necessária para evitar que isso aconteça e para proteger as comunidades contra o uso indevido tanto por parte de grandes empresas quanto por parte de governos autoritários.
Na Líbia, sistemas autónomos de armas letais já foram usados em combates e, no Zimbábue, um controverso esquema militar nacional de reconhecimento facial levantou preocupações sobre o alegado uso da tecnologia como ferramenta de vigilância pelo governo. O esboço regulamentar de IA da UA não abordou explicitamente a utilização de IA pelos governos africanos para interesses de segurança nacional, mas reconhece que poderá haver riscos perigosos envolvendo a IA.
Barbara Glover, coordenadora de programas para um grupo da UA que trabalha com políticas para tecnologias emergentes, ressalta que o esboço regulamentar recomenda o investimento em infraestruturas digitais e de dados por parte dos países africanos, assim como a colaboração com o setor privado para a criação de centros de inovação e de fundos de investimento para apoiar start-ups de IA no continente.
Ao contrário da UE, a UA não tem o poder de aplicar políticas e leis abrangentes nos seus estados-membros. Mesmo que o esboço da estratégia de IA obtenha a aprovação dos parlamentares na assembleia da UA em fevereiro, as nações africanas têm de implementar a estratégia continental por meio de políticas e leis nacionais de IA.
Entretanto, as ferramentas alimentadas pela aprendizagem automática irão continuar a ser implantadas, levantando questões éticas e necessidades regulatórias, e representando um desafio para os legisladores por todo o continente.
Nyalleng diz que a África precisa de desenvolver um modelo de regulamentação e governação local de IA que equilibre os riscos e as recompensas localizadas. “Se funciona com as pessoas e para as pessoas, então tem de ser regulamentado”, diz ela.