Conectados às redes sociais e desconectados dos nossos corpos 
Humanos e Tecnologia

Conectados às redes sociais e desconectados dos nossos corpos 

As transformações culturais moldam corpos e subjetividades. Estudos abordaram essas mudanças sob o conceito de tecnologia do poder sobre a vida. Com base no que Foucault chamou “tecnologia de bio poder”, podemos interpretar as redes sociais como a nova tecnologia de bio poder.  

Ao longo das revoluções industriais, a cultura passou por profundas transformações. Curiosamente, só tomamos consciência delas depois de ocorrerem. Atualmente, vivemos a quarta revolução industrial, conhecida como Indústria 4.0. Essa revolução tecnológica é única, pois estamos conscientes dos seus impactos enquanto acontecem. Essa consciência permite-nos refletir sobre os possíveis efeitos dessa revolução em tempo real.  

Durante as primeiras revoluções industriais, foram desenvolvidos inúmeros dispositivos que moldaram subjetividades e corpos; o objetivo era extrair o maior proveito possível da força de trabalho das massas.   

A estrutura de vigilância constante e a organização temporal desde o início até o fim da vida são exemplos de mecanismos que procuram regular o poder sobre a vida, visando adequá-la às normas estabelecidas. Essas estratégias pretendem otimizar as capacidades individuais, treinando os sujeitos para se tornarem parte produtiva do sistema de produção.  

A construção deste sujeito adestrado só foi possível a partir de um jogo muito complexo de relações de poder, as quais foram capazes de fixar os corpos e as subjetividades ao aparelho de produção capitalista.   

A sociedade contemporânea difere significativamente da era industrial moderna no seu auge. A análise dessa transformação social sugere a emergência de novas formas de subjetivação, distintas daquelas que levaram à formação de corpos disciplinados e obedientes.   

Atualmente, o capitalismo assenta-se numa nunca vista capacidade de processamento digital, e a definição de uso de espaços e corpos está a ser alterada em função disso. Com o uso de espaços virtuais e corpos virtualizados, o controlo dá-se de forma cada vez mais intensa, a oposição entre as esferas pública e privada dilui-se, e novas modalidades entram em cena. Novas tecnologias permitem novos modos de vivenciar os limites entre espaço e tempo.  

O Panóptico de Foucault e o atual  

Foucault elaborou conceitos significativos relacionados com panóptico e bio poder, cujas ideias são relevantes para compreendermos o contexto contemporâneo. Conforme a sua análise, tais tecnologias possuem um impacto substancial nos corpos individuais. O panóptico é retratado como uma estrutura arquitetónica composta por uma torre central circundada por diversas celas. Cada cela é dotada de duas janelas, uma voltada para o interior e outra para o exterior. A presença de um vigia na torre central e a utilização das celas para o confinamento de indivíduos possibilitam uma vigilância contínua e o reconhecimento imediato. Esse arranjo arquitetónico estabelece uma dinâmica de controlo e observação permanente. 

Ao transpor o conceito do panóptico para o contexto atual, observamos que a arquitetura de vigilância se tornou virtual, embora os seus efeitos sejam semelhantes. A estrutura contemporânea de vigilância manifesta-se nas telas dos nossos telemóveis e tablets, nos quais desempenhamos o papel de prisioneiros e vigias simultaneamente. Enquanto isso, uma torre central, cujo responsável muitas vezes desconhecemos, detém o poder. O panóptico moderno pode ser encarado como uma ferramenta para realizar experiências e moldar comportamentos.    

Dentro das redes sociais, o sujeito contemporâneo vive num cenário panóptico, onde o poder é exercido de forma contínua e a vigilância invisível controla comportamentos. A abundância de informações disponíveis possibilita um maior controlo sobre as ações individuais. Nesse contexto virtual, o princípio do panóptico manifesta-se mediante um sistema complexo de vigilância, moldando as interações e os comportamentos dos utilizadores nas redes sociais.  

Atualmente a quantidade destas informações é impossível de se medir. Publicação de fotos, textos, blogues, ideias, “tweets”; existem infinitas formas de entregar informações ao mundo virtual, os sujeitos entregam os seus próprios corpos ao concordar com as regras de privacidade, quase inexistentes, e fazem-no de bom grado, dóceis. Essa disposição voluntária reflete, de certa forma, o que foi denominado por Foucault como bio poder, um poder que se exerce sobre a vida.  

A partir da revolução industrial, surgiram mudanças sociais significativas. Na era da informação, a tecnologia desempenha um papel central nas relações humanas. Além disso, a inteligência artificial influencia o comportamento das pessoas através de algoritmos. Essas instruções invisíveis moldam as interações online, desde mecanismos de busca até recomendações de compras. A presença dessa inteligência algorítmica tem um impacto profundo na forma como percebemos, navegamos e interagimos no mundo físico e digital.  

A hiperconectividade e o uso das plataformas geram uma infinidade de dados que alimentam algoritmos presentes nelas. Embora pareça gratuito, pagamos com os nossos dados. As plataformas utilizam esses dados para influenciar e organizar o uso dos seus clientes. Os utilizadores produzem conteúdo e entregam os seus dados aos donos desses serviços. Por isso, o termo “capitalismo de vigilância” aplica-se ao cenário atual de capitalismo informacional.  

Somos os mesmos sujeitos dóceis e adestrados de Foucault, com corpos e subjetividades fixos ao mesmo aparelho de produção capitalista, porém tecnológico, com um poder de controlo que vai muito além dos horários comerciais das fábricas da primeira revolução industrial. O sujeito adestrado do século XXI é digital, digitalizado; o seu corpo físico, real, importa cada vez menos, desde que o seu corpo virtualizado seja visto, gostado e comentado. O poder continua a ser exercido, sabemos somente quem não o possui. 

 

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Referências bibliográficas:  

IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018/2019  

FOUCAULT, M. . Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Editora Vozes, 1987  

TAYLOR, Dianna. Michel Foucault: conceitos fundamentais. Petropólis – RJ. Editora Vozes Ltda, 2018.   

SALLUM, et al. A sociedade de controle: Manipulação e modulação nas redes sociais. 1ª ed. São Paulo, Editora Hedra, 2018.  

ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: A luta por um futuro humano na nova fronteira de poder/ Shoshana Zuboff, tradução George Schlesinger – 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2021.  

Deleuze, Gilles. Conversações: 1972-1990. Gilles Deleuze, tradução Peter Pál Pelbart – 3ª ed Editora 34 Ltda, 2013 reimp. 2017. 

SILVA et al 4.  

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