O ano é 2149 e as pessoas vivem, na sua maioria, “nos carris”. É assim que lhe chamam, “nos carris”, que é viver de acordo com as instruções meticulosas de software. O software sabe quase tudo sobre ti — o que te causa ansiedade, o que aumenta os teus níveis de endorfinas, tudo o que já pesquisaste, todos os lugares onde já estiveste. O software envia mensagens em teu nome; escuta conversas. É exímio nas suas otimizações: come isto, vai ali, compra aquilo, faz amor com o homem de cabelo ruivo.
O software entende tudo o que levou a este instante e prevê cada momento que se seguirá, mapeando trajetórias para tudo, desde furacões até tendências económicas. Houve um tempo em que toda a gente guardava os seus dados para si — por uma questão de higiene informacional ou, talvez, por medo de humilhação. Naquela altura, os dados estavam confinados às tuas próprias contas, um conjunto encriptado de segredos. Mas a verdade é que funciona melhor combinando tudo. Os resultados são mais satisfatórios e fiáveis. Produz-se mais serotonina. Ganha-se mais rendimento. Mais pessoas têm relações sexuais. Por isso, juntaram tudo — todos os dados — na Grande Fusão. Tudo num grande depósito, uma Reserva Federal de informação — um cofre, ou, na verdade, uma nuvem massivamente distribuída. É muito prático. Mostra-te o melhor percurso.
Muito ocasionalmente, algumas pessoas saem dos carris. Em vez de seguirem o itinerário sugerido, desligam o software. Ou talvez estejam doentes, ou na miséria, ou acordam uma manhã e sentem-se de alguma forma arruinadas. Ignoram a notificação a aconselhar-lhes que preparem um determinado café de filtro ou que acariciem o ombro de um amigo. Inspiram profundamente, de forma clara e incerta, e desfrutam dessa liberdade.
Claro que há quem acredite que isso também faz parte da lógica do cofre. Que existem carris invisíveis ao lado dos visíveis; que ninguém pode realmente sair do mapa.
O ano é 2149 e todos fingem que já não existem computadores. As IAs despertaram, a internet bloqueou e houve aquele incidente com o reator perto de Seattle. Quando tudo voltou a funcionar, a opinião pública demorou cerca de um ano a mudar, mas, de repente, o apoio colapsou de uma só vez, como um buraco que cede, e, embora parecesse uma loucura, mesmo sendo um claro atentado ao lucro, à produtividade e ao racionalismo em geral (“Devemos colaborar com as redes neurais!”, insistiam os consultores. “Somos mais fortes juntos!”), algo foi acionado na base do tronco cerebral das pessoas, um gatilho relacionado com domínio ou liberdade, ou apenas um medo antediluviano de Deus, e o público começou a destruir tudo: primeiro os desktops e smartphones, mas depois armazéns inteiros de tecnologia — quintas de servidores, centros de dados, hubs. Os mais velhos chamaram-lhe sabotagem; os mais jovens, revolução; os que estavam entre esses dois grupos, preservação. Mas também foi divertido desfazer aquilo que os seus avós e bisavós tinham construído — mecanismos que os faziam sentir como dados, bits e bytes indistintos.
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