Governança

Gestão e liderança em tempos de extrema incerteza

A pandemia da Covid-19 mostra de forma clara as dificuldades e os desafios de gerir e liderar em tempos de extrema incerteza, instabilidade, urgência e medo.

Ainda estamos no meio de um problema que não sabemos quando vai acabar, qual vai ser o seu tamanho final e as suas consequências no longo prazo. Não vivíamos uma situação semelhante desde 1918, quando o mundo foi acometido pela Gripe Espanhola. Naquele momento, a realidade em relação à mobilidade das pessoas, a velocidade da geração e transmissão da informação e os avanços da ciência eram completamente diferentes. Sendo assim, não temos uma referência histórica para ler e que ajude no momento atual. Esse momento é muito mais de escrever do que de ler, para que possamos deixar um legado de conhecimento em gestão para gerações futuras.

A ciência evoluiu muito nas últimas décadas, mas alguns pontos fundamentais não acompanharam essa evolução na mesma velocidade e magnitude. A nossa capacidade de gerar, capturar e usar informação de alta qualidade ficou muito para trás. A capacidade de gestão de um sistema cada vez mais fragmentado e complexo é cada vez menor. O acesso às novas tecnologias é cada vez mais desigual, aumentando a inequidade entre países e populações.

A Covid-19 trouxe um problema agudo e intenso, que impacta a saúde, a economia, e o comportamento, sendo que cada um desses três braços influencia os outros dois também de uma forma importante. Mostrou que os sistemas de saúde não estão preparados para sobrecargas desse tipo. Ficou claro que a única forma de estar preparado para enfrentar uma situação como a Covid-19 é já ter um sistema altamente eficiente antes da pandemia e que tenha a capacidade de se ajustar ao longo do problema. Sistemas de saúde são desenhados para trabalhar com a máxima eficiência económica e por isso não existe espaço para ociosidade dos mais diversos tipos, incluindo equipamentos, espaço físico e recursos humanos, por isso a abordagem ideal é a prevenção de novos casos, o controlo da transmissão, porque depois que a doença se espalha e cresce, o sistema já não consegue mais se ajustar de uma forma adequada e eficiente.

Uma das características mais importantes da Covid-19 é a falta de conhecimento sobre a doença e a sua evolução, além da inexistência de tratamentos efetivos, sejam eles preventivos como as vacinas ou com medicamentos para o caso de uma doença instalada. Um dos aspectos mais difíceis de tempos como o atual é a incapacidade de prever quando vai acabar e quais serão as suas consequências. Isso gera angústia naqueles que lideram instituições e pessoas. Decisões são tomadas e revistas o tempo todo, às vezes diariamente. Esse cenário demanda uma enorme cooperação e colaboração entre aqueles que estão à frente do comando. Decisões precisam ser tomadas o tempo todo, mesmo que com pouca informação e essa dinâmica implica em revisões e mudanças frequentes. Se essas mudanças constantes, algo normal e necessário em situações como essa, forem tratadas como erro, ou usadas para alimentar confrontos e interesses pessoais, isso torna a gestão e a liderança muito difíceis. É impossível enfrentar e vencer uma guerra estando no meio de outra.

Gestão e liderança em tempos assim exigem uma forma diferente de agir em relação aos tempos convencionais porque é necessário conviver com a grande incerteza dos próximos dias sem perder a calma e mantendo a capacidade de agir de forma estruturada e planeada. Em momentos de grande sobrecarga, a tendência é agir no modo ação e reação, respondendo aos inúmeros problemas que vão acontecendo de forma simultânea, sem que se dedique um tempo mínimo para definir a estratégia, o planeamento e a execução. Numa situação como essa, é fundamental o gestor entender que não tem que tentar adivinhar o futuro e se comportar como se essa realidade por ele projetada fosse uma certeza. Esse comportamento traz um conforto totalmente inadequado para o momento.

Infelizmente em momentos como esse é preciso aprender a conviver com a incerteza com um mínimo de conforto pessoal e trabalhar para que se reduza o mais rápido possível. A condução adequada demanda colher informação da forma mais detalhada, precisa e complexa possível, idealmente em tempo real, revendo diariamente posições, conceitos, projeções e verdades. Entretanto, é importante projetar diferentes e possíveis cenários e tentar se preparar para enfrentá-los, mesmo os mais improváveis, principalmente se esses podem ter consequências muito significativas, tanto positivas quanto negativas. Tem que ficar claro que nesse momento a função do líder ou do gestor é construir o futuro e não tentar adivinhá-lo, e essa construção acontece através da incorporação de novas informações, que vão levar a uma revisão das escolhas e decisões e de uma execução eficiente das ações.

Para enfrentar uma situação aguda, intensa e impactante como essa representada pela Covid-19, é necessário que o sistema já esteja estruturado e preparado e que já atue de forma eficiente. Nenhum sistema consegue se tornar eficiente da noite para o dia, principalmente no meio de uma pandemia. A tendência é exatamente o oposto, que fique cada vez mais confuso e ineficiente. Sobrecargas como essa tendem a paralisar as pessoas, daí a necessidade de ter os processos e as respostas previamente trabalhadas para que aconteçam de forma eficiente. É importante entender que o normal em situações e instituições complexas é a ineficiência. A eficiência é um processo ativo, uma conquista, e não algo que acontece naturalmente.

Considero que uma gestão adequada tem que trabalhar de forma eficiente sete dimensões:

Estratégia, Planeamento, Liderança, Coordenação, Informação, Execução e Comunicação.

Pilares da Gestão

Gestão e liderança bem conduzidas exigem uma cultura previamente construída que permita que os sete itens possam ser trabalhados de forma adequada. Em momentos de stress e sobrecarga, onde um volume adicional e muito grande de problemas torna quase impossível ter o tempo necessário para desenhar a Estratégia e o Planeamento, a existência de uma disciplina, rotina e cultura prévias voltada para esses pontos é fundamental. Qualquer um dos pontos que seja trabalhado de forma inadequada enfraquece a operação e diminui as chances de entrega. Ponto importante é o líder e gestor entender que ele vale pelo que ele entrega e não pelo que ele promete. O que faz diferença é conseguir fazer com que um projeto perfeito no papel aconteça na prática. Projetos que não saem do papel são inúteis, são apenas um exercício intelectual.

É sempre necessário trabalhar da forma mais lógica possível, mas trabalhar com lógica, sem dominar as variáveis e os pontos importantes é intuição fantasiada de lógica. É importante tentar entender qual o nível de incerteza de um teórico raciocínio lógico e caso sejamos surpreendidos com resultados que vão contra a nossa lógica, o importante é tentar achar a variável importante que não foi levada em consideração. Algumas vezes a situação é mais complicada, quando a variável é desconhecida. Não se pode cometer o erro de tentar manipular a interpretação de um resultado inesperado, diferente daquele que projetamos, para tentar parecer que ele é aquele que estávamos esperando.

Outro ponto importante é que modelos matemáticos são apenas um exercício matemático e não uma previsão do futuro. E quanto mais famosa e respeitada é a pessoa ou instituição que criou o modelo, mais o exercício é tratado como uma verdade. Todo cuidado é pouco. Modelos matemáticos servem para avaliação e definição das variáveis importantes e para criação de metas, para que os resultados projetados pelo modelo aconteçam.

Em qualquer projeto é necessário entender que existem três dimensões que precisam ser trabalhadas: Tempo, Custo e Qualidade. Nesse caso, se define uma escala de prioridades, sendo que a última normalmente tem que ser sacrificada. Se queremos entregar um projeto em que a maior prioridade é a qualidade e precisamos que ele aconteça rápido, provavelmente isso vai custar caro. Se, por um outro lado, queremos esse mesmo projeto gastando o mínimo possível, vai levar um tempo maior para acontecer.

Definindo prioridade nos projetos

Um outro ponto importante diz respeito à liderança e à coordenação. Liderança é algo que precisa ser conquistado. Ela não acontece naturalmente ou por decreto. Uma regra básica da liderança é que uma pessoa ou instituição só consegue se posicionar como liderança se isso é o melhor para aqueles que são liderados. Liderança não é comandar, é fazer com que a vida dos outros seja melhor com o líder do que sem ele. Em situações extremas como acontece com a Covid-19 é natural que se procure um líder e uma coordenação, mas se essa liderança não existia antes de alguma forma, fica muito mais difícil criar essa realidade rapidamente em uma situação de tamanha pressão.

Um ponto interessante em relação ao momento atual é que traz uma combinação adequada para grandes mudanças, do tipo necessário para os sistemas de saúde. Essa situação combina três características: sentido de urgência, inimigo comum e medo. Esse é o momento ideal para iniciarmos uma mudança no Sistema de Saúde porque assim que esses três fatores forem desaparecendo, a capacidade de produzir grandes mudanças vai diminuindo. Num país continental como o Brasil, uma coisa que tem que ser levada em conta é a heterogeneidade do país. Em situação de tamanha desigualdade, traçar projetos e planos baseados na média, é um erro. Isso torna ainda mais complexo estruturar e conduzir o Sistema de Saúde.

Na comunicação é fundamental que o gestor saiba que, na sua posição, projeções são tratadas como promessas e opiniões como verdades. Todo cuidado é pouco. Comunicação adequada é rara em grandes instituições e se torna ainda mais importante e difícil em momentos como a Covid-19.

Finalmente, acredito que o que está a acontecer na Saúde pode servir de exemplo para qualquer outra área da sociedade e da economia. É um momento difícil, sofrido, mas de grande aprendizagem. E que se bem trabalhado pode preparar pessoas, instituições e países para enfrentar grandes problemas que inevitavelmente vão acontecer no futuro.

Artigo de Nelson Teich, Autor – MIT Technology Review Brasil