Inovação

O Metaverso pode ser a nova Internet e tornar-se na prioridade das Big Techs

Mas assim como a Internet criou uma nova indústria, com novos empregos e novos bilionários, o metaverso repetirá essa história, possivelmente as uma escala ainda maior.

Em maio, afirmei, na MIT Technology Review Brasil, que o “Brasil tem a chance de liderar a corrida pelo metaverso”. Em apenas três meses muito aconteceu e o metaverso se tornou um termo cada vez mais presente nos media, e principalmente, uma nova estratégia de gigantes de tecnologia. O termo foi mencionado por CEOs em várias recentes conferências de anúncio de resultados no segundo trimestre. Mark Zuckerberg, do Facebook, Satya Nadella, da Microsoft, David Baszucki, da Roblox, e Shar Dubey, da Match Group, afirmaram que o metaverso iria pautar a estratégia das suas empresas.

Do Silicon Valley a Shenzhen, as empresas de tecnologia aumentam as suas apostas nesse setor. Para os não iniciados, o metaverso é a terminologia utilizada para indicar um tipo de mundo virtual que tenta replicar a realidade através de dispositivos digitais. É um espaço coletivo e virtual partilhado, constituído pela soma de ‘realidade virtual’, ‘realidade aumentada’ e ‘Internet’”, como afirma a página do termo na Wikipédia. A expressão foi cunhada pelo escritor Neal Stephenson no seu romance de 1992, “Snow Crash”. Depois, Ernest Cline usou o mesmo conceito para criar o Oásis em seu romance “Ready Player One”, que se tornou num filme de Steven Spielberg.

Mark Zuckerberg, fundador e CEO do Facebook, parece ter se tornado o mais recente convertido ao metaverso. O executivo deu uma série de entrevistas recentemente afirmando que o Facebook vai apostar o seu futuro no metaverso. “Nós vamos realizar uma transição de ser uma empresa vista primariamente como de redes sociais para sermos uma empresa de mertaverso”, disse Zuckerberg.

Em julho, o Facebook disse que estava a criar uma equipa de produto para trabalhar no metaverso que faria parte do seu grupo de AR e VR, no Facebook Reality Labs. Dias antes tivemos uma demonstração do que estava por vir. O Facebook convidou um grupo de jornalistas para conhecer o seu Horizon Workrooms. A app é a primeira tentativa da rede social de criar uma experiência de Realidade Virtual especificamente para as pessoas trabalharem juntas.

Segundo o jornalista Alex Heath, que participou da demonstração, até 16 pessoas em VR podem estar juntas numa sala de trabalho, enquanto outras 34 pessoas podem entrar em uma videochamada sem usar um headphone. Uma aplicação de desktop complementar permite que faça uma transmissão ao vivo da tela do seu computador sobre o seu espaço de mesa virtual. Graças ao rastreamento manual e às câmeras frontais, uma representação virtual do seu teclado físico fica embaixo da tela para digitar em um aplicação web simples que o Facebook criou para fazer anotações e gerenciar calendários. Ou seja, entra num mundo virtual para realizar a reunião com os seus colegas.

Facebook não deve liderar o metaverso

Zuckerberg fala de realidade virtual há anos. Ainda em 2014, quando o Facebook comprou a Oculus por US $2 mil milhões, afirmou com entusiasmo que a compra permitiria experiências virtuais imersivas nas quais se sentiria “presente em outro lugar com outras pessoas”. De certa forma, o metaverso é uma sequência dos planos do Facebook iniciados há quase uma década.

O Facebook é um player gigante a ser reconhecido, mas minha aposta é que não será o vencedor na corrida pelo metaverso. Da mesma forma que a IBM não se tornou a líder nos computadores pessoais ou na nuvem, o Google nunca conseguiu construir uma presença sólida nas redes sociais ou no setor de mensagens instantâneas e nem a Microsoft e muito menos a Nokia se tornaram as líderes em smartphones, o Facebook, apesar do seu entusiasmo, não deve liderar essa corrida.

Basicamente, porque mesmo tendo a vontade e os recursos, usualmente falta às empresas líderes a cultura para operar nesses novos mercados. E não estou a dizer que o Facebook será um player irrelevante, longe disso. Os biliões de dólares que a empresa já investiu no desenvolvimento do Oculos Quest e toda a tecnologia de hardware criada para uso em realidade virtual (e consequentemente o metaverso) são impressionantes e levaram a avanços indiscutíveis.

“O metaverso, o sonho de um tecnólogo, é o pesadelo do Facebook. Tornaria a rede social irrelevante”, afirmou Scott Galloway, professor de marketing. “O ativo mais valioso do Facebook é o seu gráfico social, o seu conjunto de dados de utilizadores, links entre utilizadores e o seu conteúdo partilhado. Num futuro metaverso, nós todos teremos identidades no metaverso e qualquer um pode abrir um espaço virtual para partilhar fotos da festa de aniversário do seu filho de 10 anos ou discutir sobre vacinas”, conclui.

Quem tem potencial no metaverso?

De um ponto de vista ocidental, apostaria as minhas fichas na Roblox e na Epic jogos como novos líderes do metaverso de maneira mais ampla. Nas aplicações empresariais, a vantagem seria da Microsoft.

Da perspectiva hardware/software Nvidia e Apple levam vantagem por já terem a capacidade de desenvolverem os seus próprios chips (o Facebook compra chips prontos da Qualcomm). Uma vasta biblioteca de chips de Inteligência Artificial e o software necessário para executá-los também são peças essenciais do metaverso.

Do outro lado do mundo, Tencent, Byte Dance e Sea são concorrentes robustos, mas as duas primeiras vêem-se diante da crescente regulação chinesa e a terceira tem o seu foco na construção de um e-commerce competitivo na Ásia.

A Microsoft tem uma grande vantagem não somente pela sua gigantesca comunidade de programadores criando soluções corporativas e sua robusta presença no mundo corporativo. A Microsoft também está trazendo jogos em nuvem para seus consoles Xbox. Em breve, os assinantes do Xbox Game Pass Ultimate nos consoles Xbox Series X / S e Xbox One poderão transmitir mais de 100 jogos sem baixá-los. Segundo a Microsoft, as métricas de desempenho do serviço serão 1080p e 60 frames por segundo. O Xbox Cloud Gaming tornou-se disponível para dispositivos móveis e PC em junho de 2021. A Microsoft também anunciou esta semana que o próximo capítulo da popular série Halo, Halo Infinity, será lançado em 8 de dezembro de 2021.

O poder da comunidade

Há anos a Microsoft desenvolve hardware de mixed reality para aplicações corporativas. O seu HoloLens é um dos mais usados no mercado. Realidade mista ou realidade híbrida é a tecnologia que une características da realidade virtual com a realidade aumentada. Insere objetos virtuais no mundo real e permite a interação do utilizador com os objetos, produzindo novos ambientes nos quais itens físicos e virtuais coexistem e interagem em tempo real.

No ano passado, a Nvidia lançou a sua plataforma Omniverse “para conectar mundos 3D num universo virtual partilhado.” O presidente-executivo, Jensen Huang, usou a maior conferência anual da empresa, em outubro, para creditar publicamente “Snow Crash”, de Stephenson, como a inspiração original para o conceito de um sucessor de realidade virtual para a Internet, afirmando que “o metaverso está a chegar”.

Mas o que definirá os vencedores do metaverso não será apenas o dinheiro, a vontade de fazer liderar esse movimento ou a propriedade intelectual de uma empresa. É a capacidade de envolver comunidades, seja para as pessoas congregarem no metaverso ou desenvolverem as experiências desse ambiente digital que criará os vencedores.

Jogos, Netflix e onde gastamos nosso tempo

Os jogos são uma parte essencial do metaverso, mas o metaverso não irá se limitar aos jogos. Eles são apenas a porta de entrada, um primeiro passo nesse sentido. Reed Hastings, CEO da Netflix, já disse que o Netflix “compete com (e perde para) o Fortnite mais do que a HBO”. Recentemente, a Netflix inclusive anunciou que a partir de 2022 entrará no segmento de jogos, oferecendo jogos na sua app.

Como aponta o estudioso Matthew Ball, o mercado de jogos é enorme e cresce rapidamente, mas essa não é a única razão para a entrada da Netflix em jogos. “Embora seja comum ouvir que ‘os jogos agora têm quatro vezes o tamanho da bilheteria global dos cinemas’, a bilheteria é menos de 1/15 da receita total de vídeo globalmente. Em outras palavras, os jogos provavelmente vão arrecadar cerca de US $180 mil milhões em 2021, enquanto os vídeos excederão US $650 mil milhões”, diz Ball. Ou seja, na guerra pela atenção do consumidor o jogo e o metaverso têm um potencial enorme e a receita de jogos mostra que esse ainda é um mercado bastante incipiente em comparação ao vídeo como um todo.

Vale lembrar que somente em 2021 a Netflix deve investir US $19 mil milhões na produção de conteúdo original. Mesmo assim, a empresa tem perdido assinantes nos Estados Unidos e Canadá. A entrada do HBO Max, Paramount+ e diversos novos concorrentes ajudam a explicar a queda, mas os jogos também são um elemento a ser considerado. E no final do dia, a Netflix está no mercado de vender entretenimento, e estar próximo da indústria de jogos não é uma má ideia.

As nossas crianças, o nosso futuro

Mas assim como o Facebook, se sobra dinheiro e vontade/necessidade de reter nossa atenção, falta o elemento da comunidade de programadores para uma entrada relevante no metaverso. Ao observarmos o Roblox fica mais fácil de entender como esse elemento se aplica.

O Roblox é muito mais que um jogo, é uma plataforma onde qualquer um pode criar um jogo (ou experiência). Hoje, já são mais de 8 milhões de programadores criando essas experiências. São mais de 20 milhões de experiências, que vão desde adotar um animal de estimação no Adopt Me! ou aprender sobre história numa visita virtual ao Coliseu.

Desde 2008, quando a plataforma foi lançada, os utilizadores já passaram mais de 30,6 mil milhões de horas no jogo. No segundo trimestre, a receita da Roblox aumentou 127% em relação ao segundo trimestre de 2020, indo para US $454,1 milhões. A média de utilizadores ativos diários (DAUs) foi de 43,2 milhões, um aumento de 29% ano após ano.

Perceba a ironia de que enquanto Facebook e Netflix estagnaram no crescimento de utilizadores, a Roblox continua a aumentar a sua base mesmo com a pandemia diminuindo o isolamento social e permitindo que muitos retornem às suas atividades.

Mas provavelmente os grandes números do Roblox e da Epic Games (dona do Fortnite), que tem o capital fechado e não divulga números da mesma maneira que o Roblox, são o aspecto menos interessante das possibilidades que oferecem.

O metaverso é o novo terceiro lugar 

Como já escrevi aqui na MIT Tech Review ao falar sobre o impacto dos jogos no e-commerce, o crescimento dos jogos eletrónicos está diretamente ligado à transformação dos jogos em um “Terceiro Lugar”. O termo foi cunhado pelo sociólogo Ray Oldenburg e se refere a lugares onde as pessoas passam o tempo entre a casa (“primeiro” lugar) e o trabalho (“segundo” lugar). São espaços onde as pessoas trocam ideias, se divertem e estabelecem relacionamentos. Igrejas, cafés e parques são exemplos de “Terceiro Lugar”. Ter um terceiro lugar para socializar fora de casa e do trabalho é crucial para o bem-estar, pois traz um sentimento de conexão e pertença. E os videojogos são cada vez mais um “Terceiro Lugar”. Historicamente, as atividades e o desenvolvimento da comunidade eram offline, mas graças aos avanços da tecnologia os videojogos se tornaram sociais.

Não por acaso, são cada vez mais frequentes shows e eventos dentro do Roblox e Fortnite (Travis Scott reuniu milhares de pessoas e o diretor Christopher Nolan fez uma premiere). As marcas têm investido pesadamente para entrar nesse universo. De olho nos 43 milhões de utilizadores que acessam o Roblox diariamente, a Netflix anunciou em julho um novo ponto de encontro virtual baseado na série Stranger Things. Mais recentemente, a Roblox anunciou o lançamento do Vans World, um metaverso de skate interativo da marca Vans dentro do mundo dos jogos. Ele é inspirado nos locais da marca, como a House of Vans e outros destinos de skate, o Vans World é um espaço 3D contínuo onde os fãs podem praticar as suas manobras com outras pessoas e experimentar os equipamentos da marca.

“A Roblox é o novo ponto de encontro social, muito parecido com o shopping local na década de 1980, onde os adolescentes se reuniam”, afirma Christina Wootton, vice-presidente de parcerias de marca da Roblox. “O Starcourt Mall virtual é um cenário semelhante reinventado dentro do Roblox que abre possibilidades únicas para envolver e aumentar o público global do programa.”

Vale assistir a essa apresentação de fevereiro de David Baszucki, CEO da Roblox. Nela, o executivo detalha a estratégia de crescimento da empresa com o seu potencial de criar experiências, inclusive educativas e comerciais, com uma crescente comunidade.

O Brasil pode ser protagonista no metaverso

De tempos em tempos acontece um alinhamento de estrelas que pode beneficiar um mercado. E o Brasil possivelmente se vê diante dessa oportunidade. Na China, o governo cria um ambiente cada vez mais inóspito para empresas e programadores. Nos Estados Unidos, existe o dinheiro e a escala de utilizadores, mas falta interação e mão de obra. Não é fácil apostar no metaverso num país que sobram empregos e faltam candidatos. Na Europa há programadores, principalmente no Leste Europeu, mas a fragmentação é gigantesca.

Enrico Machado, brasileiro que programa em Roblox, é um exemplo do potencial de milhares de utilizadores acostumados a uma base desde a infância. Começou a jogar Roblox com 11 anos de idade. Aos 15 já era um programador. Hoje, na faculdade, estuda sistemas da informação e trabalha num grande estúdio brasileiro desenvolvendo apenas jogos para Roblox.

“O Roblox é muito popular. Funciona a partir de microtransações. Pode comprar coisas nos jogos que as pessoas criam e os programadores ganham dinheiro com isso. Hoje tem muitas pessoas a ganharem dinheiro de forma absurda. É tipo o mercado de futebol em que têm jogadores no topo da Pirâmide. Para cada Neymar tem milhões de pessoas que gostariam de ser o Neymar, essa relação é parecida. Mas qualquer pessoa pode ganhar um dinheiro razoável”, diz Machado. Garante que não é muito difícil ganhar um dinheiro razoável na plataforma.

Tem muitos consumidores a quererem jogar. Então, se entende o básico de comunidade, de design, de jogo, de programação, você sai do zero e num curto espaço de tempo já começa a ganhar um dinheiro se focar nisso”.

Machado trabalha num estúdio com outras dezenas de programadores. “No estúdio fazemos reuniões e tudo mais para para aplicar as melhores práticas para todos os jogos. Estou a aprender bastante com eles. Eu sei programar, sei fazer um jogo bonitinho mas eu não entendo nada de design. Eu não sei como fazer um jogo de sucesso. Sabe que existem melhores práticas, mas com um grupo maior fica mais fácil. Conhecer essas práticas é tão importante quanto saber programar”, garante.

Milhões de programadores se unindo 

Não é um caso isolado. Como Machado existem milhares de jovens no Brasil a trabalhar em estúdios enormes a desenvolver Roblox. E diferentemente de outras linguagens, a utilizada pela Roblox é acessível e de fácil aprendizagem. Além disso, não é essencial ter um computador super poderoso ou uma conexão ultra-rápida.

Não é por acaso que o Brasil já é o quinto mercado de jogos do mundo, tem uma das maiores comunidades de utilizadores do planeta, um crescente mercado de streaming e ícones de jogos eletrônicos como Nobru.

A Wildlife, unicórnio brasileiro avaliado em mais de US $1,3 mil milhões, já conta com mais de 800 colaboradores em países como Brasil, Estados Unidos, Argentina e Irlanda. Criada em 2011, a empresa tem mais de 60 jogos mobile.

O metaverso precisa de tecnologia e software, mas o factor determinante é a fidelização da comunidade de programadores e utilizadores. Por essas razões, o Roblox e o Fortnite estão na dianteira. Já o Brasil tem todos os elementos para ser o líder global neste setor. Mas nada garante que isso irá acontecer. Montreal, no Canadá, oferece pistas sobre como podemos acelerar esse processo ao criar incentivos para atrair e reunir empresas, programadores e investimentos. Mas esse será assunto para a próxima coluna.

O metaverso deverá se tornar a próxima Internet e muitos gigantes de hoje vão perder influência. Mas assim como a Internet criou uma nova indústria, com novos empregos e novos bilionários, o metaverso repetirá essa história e possivelmente em uma escala ainda maior. É irónico que Stephenson tenha dito para a revista Vanity Fair, em 2017, que quando escrevia “Snow Crash” e criava o metaverso, estava “apenas a inventar merda”. Décadas depois, os CEOs levam essa “invenção” cada vez mais a sério.

Artigo de Guilherme Ravache, Autor – MIT Technology Review Brasil