Biotecnologia

Se o ADN é como um software, é possível corrigir o código em situações de doença genética?

Numa corrida para curar a filha, um programador do Google entra no mundo dos remédios hiperpersonalizados.

Ao conhecê-la pela primeira vez, não irá perceber que Ipek Kuzu sofre de uma doença genética rara. A criança de três anos brinca alegremente sozinha durante horas, com os seus carros de miniatura e a sua cozinha de brincar. Mas infelizmente não está bem. Tem tido dificuldades em andar e falar, e se nada for feito, pode morrer por volta dos 20 anos. Ipek tem ataxia-telangiectasia, ou A-T, uma doença originada por um erro no seu ADN e que pode causar perda de células cerebrais, juntamente a um alto risco de infeção e cancro.

É o tipo de problema em que os médicos acenam a cabeça em desaprovação ao constatarem que não há muito a fazer. Mas o pai de Ipek, Mehmet, e a mãe, Tugba, esperam que a criança escape desse destino. Graças, em parte, à persistência de Mehmet, um programador do Google, em janeiro a Ipek tornou-se uma das primeiras pacientes dos EUA a receber um medicamento genético hiperpersonalizado, feito para tratar uma mutação específica. O remédio personalizado, projetado apenas para ela por um médico de Boston, Timothy Yu, está a ser chamado de “atipeksen”, fazendo referência a “A-T” e “Ipek”.

Família Kuzu em casa / MATTHEW MONEITH

Família Kuzu em casa / MATTHEW MONEITH

Para criar o atipeksen, Yu baseou-se em sucessos recentes da biotecnologia, como a terapia genética. Alguns novos medicamentos, incluindo terapias contra o cancro, tratam doenças ao manipular diretamente informações genéticas dentro das células de um paciente. Agora, médicos como Yu descobrem que podem alterar esses tratamentos como se fossem programas digitais. Mude o código, reprograme o medicamento e haverá a hipótese de tratar muitas doenças genéticas, mesmo aquelas tão incomuns como a de Ipek.

A nova estratégia poderia, em teoria, ajudar milhões de pessoas que vivem com doenças raras, a grande maioria das quais são causadas por mutações genéticas e não têm tratamento. Os reguladores norte-americanos dizem que no ano passado receberam mais de 80 pedidos para permitir tratamentos genéticos a indivíduos ou grupos muito pequenos, e que poderiam tomar medidas a fim de tornar os medicamentos feitos sob medida mais fáceis de testar. Novas tecnologias, incluindo tratamentos de edição de genes personalizados usando CRISPR, estão a chegar.

“Nunca pensei que estaríamos em posição de sequer pensar em tentar ajudar esses pacientes”, diz Stanley Crooke, empresário de biotecnologia e fundador da Ionis Pharmaceuticals, com sede em Carlsbad, Califórnia. “É um momento surpreendente”

 

Drogas anti-sentido

No momento, porém, as seguradoras não vão pagar por medicamentos genéticos individualizados e nenhuma empresa está a fabricá-los (embora algumas estejam a planear fazê-lo). Apenas alguns pacientes já receberam os medicamentos, geralmente após feitos heroicos de pressões e angariação de fundos. E não é engano que programadores como Mehmet Kuzu, que trabalha com privacidade de dados, estão entre os primeiros a conseguir medicamentos individualizados. “Como cientistas da computação, eles entendem como funciona. Tudo isso é código”, diz Ethan Perlstein, diretor científico da Fundação Christopher and Dana Reeve.

Uma organização sem fins lucrativos, o A-T Children’s Project, financiou a maior parte do custo de conceção e fabricação do medicamento de Ipek. Para Brad Margus, que criou a fundação em 1993 depois dos seus dois filhos serem diagnosticados com A-T, a mudança entre aquela época e agora não poderia ser mais dramática. “Nós levantamos muito dinheiro, financiamos muitas pesquisas, mas é tão frustrante que a biologia esteja a ficar cada vez mais complexa”, diz ele. “Agora, de repente é nos apresentada a oportunidade de simplesmente corrigir o problema na sua origem”.

Ipek tinha apenas alguns meses de idade quando o seu pai começou a procurar uma cura. Um amigo geneticista enviou-lhe um artigo a descrever um possível tratamento para o seu tipo exato de A-T, e Kuzu voou de Sunnyvale, Califórnia, para Los Angeles para encontrar os cientistas por trás da pesquisa. Mas os mesmos disseram que ninguém tinha testado o remédio em seres humanos ainda: “Precisamos de muitos mais anos para que isso aconteça”, disseram-lhe.

Timothy Yu, do Boston Children's Hospital (Hospital Infantil de Boston)

Timothy Yu, do Boston Children’s Hospital (Hospital Infantil de Boston)

 

Kuzu não tinha anos. Depois de voltar de Los Angeles, Margus entregou-lhe uma pen drive com um vídeo de uma palestra de Yu, um médico do Hospital Infantil de Boston, que descreveu como planeava tratar uma jovem com doença de Batten (uma doença neuro degenerativa diferente) em que a imprensa mais tarde chamaria de “um exemplo impressionante da medicina genómica personalizada”. Kuzu percebeu que Yu estava a utilizar a mesma tecnologia genética que os cientistas de Los Angeles tinham descartado como um sonho distante.

Essa tecnologia é chamada de “anti-sentido” (ou, em inglês, antisense). Dentro de uma célula, o ADN codifica informações para produzir proteínas. Entre o ADN e a proteína, entretanto, encontram-se moléculas mensageiras chamadas RNA, que transportam as informações do gene para fora do núcleo. Pense no anti sentido como moléculas de imagem espelhada que se fixam a mensagens específicas de RNA, letra por letra, impedindo que sejam transformadas em proteínas. É possível silenciar um gene dessa forma e, às vezes, corrigir erros também.

Embora os primeiros medicamentos anti sentido tenham aparecido há 20 anos, o conceito alcançou o seu primeiro grande sucesso apenas em 2016. Foi quando um medicamento chamado nusinersen, fabricado pela Ionis, foi aprovado para tratar crianças com atrofia muscular espinhal, uma doença genética que de outra forma as matariam por volta do seu segundo aniversário.

Yu, um especialista em sequenciamento de genes, não havia trabalhado com anti sentido antes, mas, assim que identificou o erro genético que causava a doença de Batten na sua jovem paciente, Mila Makovec, ficou claro para ele que não precisava parar por aí. Se ele conhecia o erro do gene, por que não criar um medicamento genético? “De repente, uma lâmpada acendeu-se”, disse Yu. “Não seria possível tentar reverter isso? Era uma ideia tão atraente, e tão simples, que basicamente vimo-nos incapazes de ignorá-la”.

Yu admite que foi audacioso ao sugerir sua ideia à mãe de Mila, Julia Vitarello. Mas não estava a começar do zero. Numa demonstração de como os medicamentos biotecnológicos modulares poderiam vir a tornar-se, Yu baseou a milasen na mesma estrutura química do medicamento de Ionis, exceto que, neste caso, usou a mutação específica de Mila como alvo genético. Onde Ionis levou décadas para aperfeiçoar o seu remédio, Yu acaba de estabelecer um recorde: levou apenas oito meses para criar o milasen, testá-lo em animais e convencer a Food and Drug Administration (FDA) dos EUA a injetar o novo medicamento na espinha de Mila.

“A diferença agora é que alguém como Tim Yu pode desenvolver um medicamento sem nenhuma familiaridade anterior com essa tecnologia”, disse Art Krieg, diretor científico da Checkmate Pharmaceuticals, com sede em Cambridge, Massachusetts.

 

Código-fonte

Quando a notícia sobre milasen se espalhou, Yu ouviu mais de cem famílias a pedir a sua ajuda. Isso colocou o médico de Boston numa posição difícil. Yu tem planos de testar o anti sentido para o tratamento de uma dúzia de crianças com diferentes doenças, mas sabe que não é a abordagem certa para todos, e ainda está a aprender as doenças que podem ser mais tratáveis. E nunca nada é fácil – ou barato. Cada nova versão de um medicamento pode comportar-se de maneira diferente e requer testes de segurança caros em animais.

Kuzu tinha a vantagem de que os investigadores de Los Angeles já tinham mostrado que o anti-sentido poderia funcionar. Além disso, Margus concordou que o A-T Children’s Project ajudaria a financiar a pesquisa. Mas não seria justo fazer o tratamento apenas para Ipek se a fundação estivesse a pagar por isso. Então, Margus e Yu decidiram realizar testes com medicamentos anti sentido em células de três jovens pacientes A-T, incluindo Ipek. As células da criança que melhor respondessem seriam selecionadas.

Ipek poderia não sobreviver além de seus 20 anos sem um tratamento. Matthe Monteith.

Ipek poderia não sobreviver além de seus 20 anos sem um tratamento. Matthe Monteith.

 

Enquanto esperava pelos resultados do teste, Kuzu levantou cerca de € 168 000 de amigos e colegas de trabalho da Google. Um dia, chegou à sua caixa de entrada um e-mail de outro funcionário do Google que estava a angariar fundos para ajudar uma criança doente. Ao lê-lo, Kuzu sentiu um choque de reconhecimento: a sua colega de trabalho, Jennifer Seth, também estava a trabalhar com Yu.

A filha de Seth, Lydia, nasceu em dezembro de 2018. O bebé, com belas bochechas rechonchudas, carrega uma mutação que causa convulsões e pode levar a graves deficiências. O marido de Seth, Rohan, um empresário bem relacionado de Silicon Valley, refere-se ao problema como uma “pequena mutação aleatória” no seu “código-fonte”. Os Seths levantaram mais de € 1.68 milhões, grande parte deles de colegas de trabalho.

 

Medicamentos personalizados

Nessa altura, Yu estava pronto para dar a boa notícia a Kuzu: as células de Ipek foram as que melhor responderam. Então, em setembro passado, a família fez as malas e mudou-se da Califórnia para Cambridge, Massachusetts, para que Ipek pudesse começar a usar atipeksen. A criança recebeu a sua primeira dose em janeiro, sob anestesia geral, por meio de uma punção lombar na coluna.

Depois de um ano, os Kuzus esperam saber se o remédio está a ajudar ou não. Os médicos irão monitorizar o volume cerebral e medir biomarcadores no líquido cefalorraquidiano de Ipek como uma leitura de como a sua doença está a progredir. E uma equipa da Johns Hopkins ajudará a comparar se os seus movimentos com os de outras crianças, com e sem A-T, para observar se os sintomas esperados da doença estão atrasados.

Um sério desafio enfrentado pelos medicamentos genéticos individualizados é que, com exceção de um milagre de cura, pode ser impossível ter a certeza de que realmente funcionam. Isso ocorre porque a velocidade com que doenças como o A-T progridem pode variar amplamente de pessoa para pessoa. Provar que um medicamento é eficaz, ou revelar que é um fracasso, quase sempre requer recolha de dados de muitos pacientes, não apenas de um. “É importante para os pais que estão dispostos a pagar qualquer coisa, tentar qualquer coisa, entendam que os tratamentos experimentais muitas vezes não funcionam”, disse Holly Fernandez Lynch, advogada e especialista em ética da Universidade da Pensilvânia. “Existem riscos. Experimentar um [tratamento] pode excluir outras opções e até apressar a morte”.

Kuzu diz que a sua família avaliou os riscos e benefícios. “Como é a primeira vez a usar esse tipo de medicamento, ficamos um pouco assustados”, afirma. Mas, concluiu, “não há mais nada a se fazer. Esta é a única coisa que pode dar-nos esperanças e às outras famílias”.

Outro obstáculo aos medicamentos ultrapersonalizados é que o seguro não paga. E, até agora, as empresas farmacêuticas também não estão interessadas. Priorizam medicamentos que podem ser vendidos em milhares de unidades, enquanto que no caso de Ipek, pelo que se sabe, é a única pessoa que apresenta essa mutação específica. Isso faz com que as famílias enfrentem exigências financeiras descomunais que apenas os ricos, sortudos ou bem relacionados podem atender. O desenvolvimento do tratamento de Ipek já custou € 1,6 milhões, estima Margus.

Alguns cientistas acreditam que agências como o Instituto Nacional de Saúde (NIH) dos EUA deveriam ajudar a financiar a pesquisa. O caso foi defendido numa reunião em Bethesda, Maryland, em abril deste ano. A ajuda também pode vir da FDA, que está a desenvolver diretrizes que podem acelerar o trabalho de médicos como Yu. A agência receberá atualizações sobre Mila e outros pacientes se algum deles apresentar efeitos colaterais graves.

A FDA também está a considerar dar aos médicos mais liberdade para modificar medicamentos genéticos a fim de testá-los em novos pacientes sem ter que pedir novas licenças de cada vez. Peter Marks, diretor do Centro de Avaliação e Pesquisa Biológica da FDA, compara a produção de medicamentos tradicionais a fábricas que produzem em massa camisola idênticas. Mas, destaca, agora é possível pedir uma camisola básica individual bordada com o logotipo da empresa. Portanto, a fabricação de medicamentos também poderia se tornar mais personalizada, acredita Marks.

Remédios personalizados que carregam exatamente a mensagem de que o corpo de uma criança doente precisa? Se chegarmos lá, o crédito irá para empresas como a Ionis, que desenvolveu os novos tipos de medicamentos genéticos. Mas também deve ir para os Kuzus – e para Brad Margus, Rohan Seth, Julia Vitarello e todos os outros pais que estão a tentar salvar os seus filhos. Ao fazer isso, estão a transformar a medicina hiperpersonalizada numa realidade.

Artigo de Erika Check Hayden, Contribuidor – MIT Technology Review EUA